• Carregando...
Justiça descomplicada: juiz deve traçar suas conclusões de forma simples | Nelson Jr./STF
Justiça descomplicada: juiz deve traçar suas conclusões de forma simples| Foto: Nelson Jr./STF

"Tradução" ao cidadão

Preocupada com o distanciamento entre a linguagem falada pelos operadores do Direito, nos tribunais, e a linguagem falada pela população, nas ruas, a ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), lançou, há cerca de cinco anos, o projeto Entenda a Decisão. O projeto é veiculado em seu site e "traduz" as principais decisões da ministra para a linguagem coloquial – algumas são até traduzidas para libras, a linguagem dos sinais. "Quando percebo que há uma decisão cujo teor é importante que toda a sociedade conheça e entenda, como aquelas que tratam de seguro, de direito do consumidor, procuro, com as palavras do cidadão comum, traduzir o que foi dito. Esse é um projeto pessoal de vida", diz a ministra.

Nem eles entendem

No final do ano passado, o ministro Pedro Paulo Manus, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), aproveitou um julgamento para alertar os magistrados da necessidade de serem claros. Como exemplo do que não se deve fazer, leu trechos de uma decisão: "Não sendo absoluta a faculdade reconvencional, de frisar-se a condição estabelecida, à legitimação de seu exercício, pelo verbete acima enfocado: a ocorrência de conexão entre a causa principal e a reconvenção ou entre esta e a tese eleita pelo réu/reconvinte para espancar as razões embasadoras da pretensão autoral". Ao final, perguntou a seus pares: "O que significam esses parágrafos?". E completou: "É importante que o voto seja compreendido não só por nós, mas também pelos advogados e pelas partes".

  • Nancy Andrighi: ministra relatou caso no Paraná.

Uma senhora de idade avançada aguarda o julgamento de um processo judicial. A depender da decisão, ela pode perder a casa onde vive. Veste uma camiseta com a imagem de Nossa Senhora, para quem ora durante o julgamento. Após longa deliberação por parte dos magistrados, a decisão é proferida. A idosa olha assustada para os julgadores, como sem entender o que acaba de ocorrer. E não entende. Em meio às complicadas ex­­pressões técnico-jurídicas dos ma­­gistrados, a senhora fica sem saber o mais importante: se ganhou ou perdeu a causa – e a casa.

A cena descrita, que bem poderia ser fruto da imaginação de um Franz Kafka (escritor checo, famoso por inserir personagens em intermináveis labirintos burocráticos e judiciais), ocorreu há alguns anos, no Superior Tribunal de Justiça (STJ). "Depois de ouvir a decisão do presidente, aquela senhora olhou para mim, com expressão de dúvida. Quebrando o protocolo, perguntei a ela se havia compreendido o que se decidira. Constrangida, ela respondeu que não", contou à Gazeta do Povo a ministra do STJ Nancy Andrighi, que desde então mantém um projeto pessoal de simplificação das decisões judiciais – leia quadro ao lado.

Situações assim podem se tornar menos comuns em breve – pelo menos na primeira instância. Isso porque foi aprovado anteontem, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara Federal, o Projeto de Lei n.º 7.448/06. O projeto visa a alterar o Código de Processo Civil (CPC) para determinar que os juízes redijam com linguagem simples o dispositivo – a parte em que o magistrado conclui a sentença e efetivamente decide, depois de apresentar um relatório do caso e os fundamentos que o levaram à conclusão.

Essa possível previsão legal determinando decisões sem "juridiquês" (o pouco acessível "dialeto jurídico") vem se somar aos esforços da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que desde 2005 toca a Campanha Nacional pela Simplificação da Linguagem Jurídica – no site é possível acessar um manual de linguagem jurídica, além de treinar (ou destreinar) o "juridiquês" em um jogo on-line.

Outro ponto importante para a simplificação das decisões judiciais foi marcado em abril deste ano, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução n.º 106, que estabelece critérios objetivos para a promoção de juízes. Entre esses critérios, encontra-se a qualidade das decisões proferidas, levando-se em consideração, conforme a Re­­solução: a redação, a clareza e a objetividade.

Segundo o juiz Fernando Pra­ze­res, diretor-geral da Escola da Ma­­gis­­tratura do Paraná (Emap), os candidatos à magistratura que são preparados pelas escolas e os ma­­gistrados em treinamento ou atualização vêm recebendo orientação para que se manifestem de ma­­­­neira descomplicada. "Orien­ta­mos os juízes a evitarem a linguagem rebuscada, de difícil compreensão do coletivo, mas sem perder a técnica. O juiz precisa dar a sentença como se contasse a história do processo a um leigo", afirma.

Projeto

O texto original, de autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS), sugeria "a reprodução do dispositivo em linguagem coloquial, sem a utilização de termos exclusivos da linguagem técnico-jurídica (...), de modo que a prestação jurisdicional possa ser plenamente compreendida por qualquer pessoa do povo". E ia além: determinava que a sentença simplificada fosse enviada ao endereço da parte interessada.

O texto aprovado pela CCJ, no entanto, foi o do substitutivo apresentado pelo relator do projeto, deputado José Genoíno (PT-SP), que faz apenas uma pequena alteração no inciso III do artigo 458 do CPC, estabelecendo como requisito essencial da sentença a redação do dispositivo "de maneira acessível". "A necessidade de se reproduzir o dispositivo da sentença em linguagem coloquial aumentaria o trabalhos dos juízes, tornando ainda mais burocrática a distribuição da Justiça, o que seria agravado pela necessidade do envio da referida reprodução para o endereço pessoal da parte interessada", defendeu Genoíno. Aprovado em caráter conclusivo, o projeto se­­guirá para o Senado – a menos que haja recurso para que seja vo­­tado pelo Plenário da Câmara.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]