Luiz Fux anulou três decisões da Justiça do RJ que suspendiam decretos que impunham o passaporte sanitário para não vacinados| Foto: Evelen Gouvêa/Prefeitura Maricá
Ouça este conteúdo

Decisões monocráticas recentes do ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), anularam determinações judiciais que haviam suspendido decretos municipais responsáveis por implementar o chamado “passaporte sanitário”, também conhecido como “passaporte da vacina”, que restringe o acesso de cidadãos não vacinados contra a Covid-19 a uma série de estabelecimentos, serviços e espaços. Em alguns casos, essas restrições alcançam até mesmo a oferta de serviços públicos e programas sociais voltados a famílias de baixa renda.

CARREGANDO :)

>> Faça parte do canal de Vida e Cidadania no Telegram

As deliberações do ministro, no entanto, são questionadas por juristas ouvidos pela reportagem, uma vez que Fux não abordou o caráter abusivo apontado por desembargadores a alguns itens dos decretos. Em três decisões recentes, relacionadas à capital do estado do Rio de Janeiro e aos municípios fluminenses de Maricá e Macaé, o ministro não entrou no mérito dos dispositivos questionados pela Justiça e tratou apenas da competência dos prefeitos para implementar a medida.

Publicidade

Entenda os casos

A primeira decisão judicial anulada monocraticamente por Luiz Fux foi a do desembargador Paulo Rangel, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), que havia suspendido um dos três decretos publicados pela prefeitura do Rio de Janeiro em 27 de agosto que impunham restrições a não vacinados.

A norma em questão proibia o acesso a diversos estabelecimentos e locais de uso coletivo, como academias de ginástica, cinemas, museus, estádios e ginásios esportivos, parques e demais locais de entretenimento. Os outros dois decretos, que condicionam a realização de cirurgias eletivas e até mesmo o acesso a programas sociais destinados a famílias de baixa renda à apresentação de comprovante de vacinação, não foram analisados pela Justiça do estado.

Em sua decisão, o desembargador argumentou que o passaporte sanitário representa uma prática abusiva e uma violação à liberdade de locomoção. O magistrado também questionou que a medida tenha sido implementada por meio de decreto e não de uma lei.

Por fim, ele afirmou que, de acordo com a Constituição, a liberdade de locomoção só pode ser cerceada em casos de prisão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente; ou ainda quando está estabelecido o “estado de defesa” ou o “estado de sítio”.

O mesmo desembargador também anulou decreto municipal da cidade de Maricá, publicado em 17 de setembro, que proibia acesso de não imunizados a todos os locais públicos ou privados em que houvesse, simultaneamente, 15 ou mais pessoas.

Publicidade

Em 30 de setembro, ao suspender os efeitos da decisão do magistrado, Luiz Fux declarou que a decisão do TJ-RJ “tem potencial risco de violação à ordem público-administrativa na capital fluminense, em razão do seu potencial efeito multiplicador”. Ele argumentou também que a restrição imposta pelo decreto municipal “é medida de combate à pandemia, prevista na Lei 13.979/2020 e inserida na competência do prefeito para sua adoção”. Dois dias depois, o ministro anulou decisão semelhante referente ao município de Maricá.

Em 15 de outubro foi a vez de nova decisão do TJ-RJ, nessa oportunidade da desembargadora Marilia de Castro Neves Vieira, ser derrubada pelo presidente do STF. Ela havia suspendido a implementação do passaporte sanitário em Macaé, que impedia acesso dos cidadãos não vacinados a programas sociais do município e a uma série de locais públicos.

Juristas apontam ressalvas sobre decisões de Fux

Em decisão do Supremo de dezembro de 2020, que abordava a vacinação compulsória contra a Covid-19, o tribunal decidiu que a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares pode ser implementada, porém estabeleceu critérios para isso. Um desses critérios é que as medidas sejam previstas em lei – no caso das ações avaliadas por Fux, elas são originadas de decretos das prefeituras.

Outros requisitos determinados pelo STF, na mesma decisão sobre a vacinação compulsória, são que as medidas devem:

  • ter como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes;
  • estarem acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes;
  • respeitar a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas;
  • atender aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade.
Publicidade

De acordo com Isabela Bueno, advogada e presidente da Associação Nacional de Proteção da Advocacia e Cidadania (Anpac), o passaporte sanitário não encontra guarida nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, que figuram como condições para o estabelecimento de medidas de compulsoriedade da vacina. Ela defende que, em decorrência disso, a exigência é abusiva e fere diversas liberdades.

Isabela afirma ainda que o trabalho de conscientização sobre a importância da vacinação e o custo-benefício dessa política de imunização por parte dos órgãos de saúde são meios menos agressivos às liberdades e podem alcançar o mesmo objetivo.

“No Brasil, a adesão às vacinas está alta, o que já confronta a proporcionalidade do ato de se obrigar pessoas a se vacinarem, visto que elas já estão fazendo isso voluntariamente. Apenas uma minoria resiste a se vacinar”, diz a jurista. “Ou seja, o fim a se alcançar, que é o da imunidade de rebanho, é possível mesmo sem a obrigatoriedade da vacinação”, analisa a presidente da Anpac.

Conforme explica Antônio Pedro Machado, advogado e mestrando em Direito Constitucional, as decisões do presidente do Supremo foram proferidas em sede de suspensões de tutela provisória, que é uma medida processual utilizada pelo poder público para conter o efeito de decisões judiciais que, em tese, podem colocar em xeque uma determinada política pública.

“Não se avaliou o mérito do chamado ‘passaporte da vacina’ propriamente, mas se há risco de que uma decisão judicial, proferida liminarmente e com alcance muito amplo, esvazie completamente a medida adotada pelos governos locais”, pontua.

Publicidade

“De qualquer forma, a questão constitucional me parece relevantíssima, e o Supremo pode acabar tendo que responder em que medida os chamados ‘passaportes’ são, ou não, compatíveis com aquelas decisões sobre obrigatoriedade das vacinas e com a própria Constituição Federal”, ressalta Machado.

Já o jurista Paulo César Rodrigues de Faria questiona o fato de as medidas estarem sendo implementadas por meio de decretos do Poder Executivo, sem passar por discussões mais aprofundadas nas Câmaras de Vereadores. O advogado sustenta que o STF dá “poderes ilimitados” a governadores e prefeitos para, recorrendo a decretos, estabelecerem suspensões de garantias e direitos fundamentais no âmbito da pandemia da Covid-19. Isso, segundo Faria, faz com que a Corte acabe relativizando princípios garantidos pela Constituição Federal.

“Decretos não têm poderes para afastar a liberdade das pessoas na escolha do tratamento a ser submetido”, diz o advogado, citando o artigo 15º do Código Civil, que prevê que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

Isabela Bueno reforça que os cidadãos que entenderem que sua liberdade de ir e vir está sendo desrespeitada em decorrência de medidas como o passaporte da vacina devem procurar a Justiça e pedir um habeas corpus. “Há brechas na decisão do STF que permitem a oposição ao passaporte sanitário, por exemplo, quanto à exigência de ampla informação sobre a eficácia e segurança do imunizante”, diz. “Basta um caso de morte de pessoa [que recebeu] as duas doses da vacina para colocar em dúvida a questão da eficácia. Basta uma ocorrência de grave efeito colateral do imunizante para fragilizar a segurança que ele possui”.

Machado complementa citando que em determinadas hipóteses, a medida mais adequada a depender de qual direito fundamental foi violado, pode ser o mandado de segurança, e não o habeas corpus. Ele explica que é necessário analisar cada caso em específico. “Pode-se cogitar, dependendo do caso concreto, uma reclamação constitucional para o próprio Supremo, tendo em vista o chamado caráter vinculante de algumas decisões proferidas pelo Tribunal até aqui”, afirma Machado.

Publicidade

Locais em que já vigora o passaporte sanitário

Até o momento, cinco estados brasileiros (Rio Grande do Sul, Amazonas, Pará, Pernambuco e Espírito Santo) já implementaram o passaporte da vacina. Entre as cidades, segundo o último levantamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), de 28 de setembro, 249 municípios já haviam criado algum tipo de mecanismo de restrições a não vacinados.

Os decretos e leis sobre o tema são bastante diversos entre si – enquanto a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, possui regras bastante rígidas, que vedam cirurgias e benefícios sociais, Florianópolis e Salvador irão exigir o passaporte apenas para grandes eventos, como o réveillon e o carnaval.

No resto do país, um projeto de lei que institui o passaporte de vacina em todo o país foi aprovado pelo Senado em 10 de junho. Na Câmara dos Deputados, a proposta encontrou mais resistência e, em julho, um requerimento de urgência para a votação foi rejeitado pelos deputados em votação apertada.

Na Câmara, também tramitam projetos de lei contrários à medida. Com o objetivo de evitar a discriminação de pessoas não vacinadas, o deputado Junio Amaral (PSL-MG) apresentou, em 22 de setembro, um projeto de lei que prevê a aplicação de multas para quem “tratar de forma desigual pessoas vacinadas e não vacinadas, assim como discriminar pessoas não vacinadas”.

Em 18 de outubro, o deputado federal Giovani Cherini (PL-RS) apresentou proposta para proibir a exigência de passaporte sanitário. Para fundamentar o PL 3.629, o parlamentar afirmou que "a comprovação de aplicação da vacina não previne a transmissão do vírus" e que muitos não podem tomar a vacina "por diferentes razões, motivos médicos e religiosos, e, caso seja exigido esse passaporte, essas pessoas serão vítimas de discriminação".

Publicidade

Enquanto os deputados aguardam a tramitação das propostas, o presidente da casa legislativa, Arthur Lira (PP-AL), determinou que a volta das atividades presenciais da Câmara a ser realizada no dia 25 de outubro ocorrerá mediante a apresentação de comprovantes da vacina contra a Covid-19 pelos deputados.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]