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Riachuelo em obras: “rua maldita” fascina curitibanos de todas as castas. | Daniel Derevecki/Gazeta do Povo
Riachuelo em obras: “rua maldita” fascina curitibanos de todas as castas.| Foto: Daniel Derevecki/Gazeta do Povo

Naquele tempo era assim

A derrubada dos tapumes e letreiros infames que escondiam as belezas arquitetônicas da Riachuelo trouxe à tona um mistério – o sobrado do número 407. A construção – Unidade de Inte­­resse de Preservação (UIP), denominação dada pelo setor de patrimônio municipal – é um legítimo exemplar da Belle Époque curitibana.

Foi um período áureo. Os detalhes e a decoração quase cênica eram custeados pelo fausto da erva-mate. A tal da moradia é remanescente desse tempo, mas não se sabe ao certo quem foi seu dono e que histórias guarda por trás das janelas imensas, porão alto, a escada em curva e o jardinete da frente. Por princípio, o Ippuc não divulga a identidade de proprietários. E, nesse caso em particular, são muitos mesmo, e em disputa judicial.

Ruim para a população: em meio aos cerca de 700 imóveis da rua, é o que mais chama atenção nesse momento em que transcorre o projeto Centro Novo, como ficou batizado o programa de reurbanização e revitalização da Riachuelo. O muro foi erguido ao máximo, as portas lacradas com folhas de madeira. Trepadeiras tomam conta do frontão. Não há como entrar.

Informações levantadas com os gestores públicos indicam que pelo menos três imóveis históricos da região são alvo de entreveros familiares. É o caso do Hotel Mar­­­tins, no número 110, e das ruínas do Hotel São João, no número 222 – ambas unidades de interesse. A casa do 407 está na lista. Uma das raras informações vem do arquiteto Mauro Magnobosco: o local já abrigou um salão de beleza.

"Meu sonho era que essa residência fosse agregada ao projeto dos novos cines Luz e Ritz", comenta. Os cinemas vão funcionar no prédio que pertencia ao Exército, na esquina com a Carlos de Carvalho, juntamente com uma escola especializada em audiovisual e um café. "Esse projeto vai colocar pimenta na Riachuelo", diz Mauro.

O restauro do prédio do Exército terá outra vantagem – a de reforçar a galeria de estilos construtivos da via. Com perdão ao clichê, trata-se de um museu a céu aberto. A reportagem transitou pela rua em companhia do historiador Marcelo Sutil, estudioso da Belle Époque e da arquitetura pré-modernista.

A primeira casa que Sutil destaca é aquela onde funciona a Casa Edith, edificada em 1879, um dos poucos exemplares locais do estilo neoclássico. "É uma linguagem pouco verificada em Curitiba. Passamos praticamente do colonial para o eclético", ilustra. O eclético, a propósito, está fartamente representado na Riachuelo, com destaque para o número 113, no qual funciona o Mercado Vince e onde a cúpula está prestes a desabar; e para o número 62, arquitetura de Ernesto Guaita, hoje restaurada, sede do Sul Center Fashion.

O historiador destaca, na sequên­cia, o que chama de "art déco simplificado", variante do déco desenvolvido na cidade durante a ditadura Vargas e cujas marcas são o racionalismo da forma e a economia de custos. "Tem a ver com a arquitetura soviética. Lembra uma caixa de rádio", compara, referindo-se ao modelo quadrado, com longos frisos verticais na fachada.

Há modelos na esquina da Riachuelo com a Rua XV, mas os exemplares mais conhecidos do estadonovismo são o Colégio Estadual do Paraná, a Saúde Pública da André de Barros e a UTFPR, antigo Cefet.

Arquitetura rara

Além do eclético, próprio da virada do século, e do déco, a Riachuelo também ostenta uma arquitetura rara, como a do edifício da Relojoaria Raeder, da década de 30. "Como atestam os jornais da época, o prédio foi visto como futurismo, pois as quinas de parede projetadas como que ganhavam espaço no ar", diz. Hoje, funciona ali um seminovo, com moradia em cima. Como de praxe na rua, não falta roupa nas janelas, lembrando cortiços.

Por fim, olhos grandes no Edifício Dona Rosinha – o Rosa Perrone, de Romeu Paulo da Costa, na esquina com a São Francisco. Construção marca o final do déco e o início do moderno. Na Galeria Andrade a transição já está feita: a passagem por dentro do prédio atualiza aqui um modo francês de usar a cidade. Mas, àquela altura, a Riachuelo já estava bem longe da França.

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  • Riachuelo, 427. Kleber e Ernani no Solar Veneza: a memória e o futuro
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  • Riachuelo, 305 (fundos). João Batista: Xerox no corredor
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"Escreve aí que essa rua foi injustiçada", proclama João Batista de Jesus Mota, 55 anos, detrás do balcão onde trabalha na Rua Ria­­chuelo, Centro de Curitiba. O homem tem todas as credenciais para esbravejar: soma mais de uma década de circulação pelo local, mora no trabalho e assiste – do fundo de um corredor onde está instalado seu minúsculo estabelecimento – à rotina incomum de uma das vias mais faladas da capital.

Mal falada, melhor dizendo. A Rua Riachuelo – que até meados do século 20 concentrou parte do comércio elegante da cidade – se converteu, pouco a pouco, em sinônimo de botecos pé-sujo, baixa prostituição, tráfico e mendicância. Já foi chamada de Boca do Lixo. E nos últimos tempos ganhou a alcunha de Cracolândia curitibana. Um currículo e tanto.

Basta pensar num dos rituais diários dos cerca de 70 lojistas da região. Pela manhã, empunham a mangueira de água e encharcam as calçadas de desinfetante. "Os visitantes noturnos nos deixam lembranças em estado líquido e sólido", debocha Lindonês da Silva, 40, o Sabiá, dono de uma das 30 lojas de móveis da rua. Aliás, Sabiá pôs à venda uma rara geladeira Norge, rosa-bebê, por R$ 1,5 mil. Quem sabe aparece um comprador de fino-trato. Mas do que sobrevive mesmo é da pechincha de móveis para quitinetes de estudantes. A Riachuelo é assim: um crônico ser ou não ser.

Descobrir as causas da decadência é tarefa para uma leva de historiadores. Não há consenso. Uns dizem que a culpa foi dos ônibus expressos, que a partir dos anos 70 transformaram o boulevard num corredor. Outros, por ironia, alegam que a retirada dos ônibus, em 1995, deixou a via à própria sorte. Há quem diga que o problema é de nascença: a Riachuelo é estreita, tem perspectiva pouco atraente e está na periferia da Rua XV. Por castigo, ficou com as sobras.

Por essas e outras, é provável que poucas ruas de Curitiba tenham sido alvo de tantos projetos urbanísticos, como o que a prefeitura promove agora. Quem passa e vê prédios como os da antiga Relojoaria Raeder ou o fantasma do Palácio Hotel não resiste. Fica imaginando que um dia foi um belo local. E planeja sua redenção.

Deu-se assim com o arquiteto Mauro Magnabosco, 57, ex-presidente do Ippuc e membro do corpo técnico do órgão. Antes de chegar ao instituto, contudo, foi um entre os muitos jovens do interior que vêm estudar na capital. Desem­barcou aqui em 1974 e se tornou um inquilino da Riachuelo. Lem­­­bra bem da cara que os colegas faziam quando dava seu endereço.

Hoje, entende a estranheza que o nome "Riachuelo" desperta. Daí seu senso de realidade sobre o futuro da rua que o abrigou. É o coordenador da revitalização. Mas não a imagina a área transformada num entreposto de lojas elegantes. "Vai ser por muito tempo ainda a rua dos patrícios", desafia.

A fala de Magnobosco é uma boa notícia. Um dos maiores temores é de que a nova empreitada da prefeitura vire um genocídio cultural. Saem as lojas populares, os bêbados e as meninas da noite e entram donos de elegantes brechós e franquias, edificando um espaço artificial.

É fato que algumas variações no comércio e na habitação fariam um bem danado à "Riachuelo cansada de guerra". Mas não se pode esquecer que faria falta ao Centro de Curitiba um lugar tão original, cuja diversidade encontra similares nos charmosos Centro Velho de Santos e na Lapa carioca.

Olhos para ver

À primeira vista, a Riachuelo choca pela quantidade de vidros quebrados, imóveis históricos avariados e gente com "noia" ao deus-dará. Passada a primeira impressão, fica a surpresa: na rua estreita onde sempre se vê pelo menos dois homens carregando armários – fora da faixa – ouve-se muita conversa fiada. É gente que se trata pelo nome. Eis um sinal de fumaça.

Nas duas semanas em que a reportagem da Gazeta do Povo circulou pelo local, deu para ver árabes em colóquio, comerciante cortando as unhas dos pés na porta da loja e ouvir testemunhos de que a Riachuelo, apesar do reboco caindo e da falta de polícia, não é o pior dos mundos. "Todo mundo se fala", festeja o advogado Eládio Prados Júnior, 56 anos, um dos que têm feito justiça à velha rua.

Eládio representa uma Ria­­­chuelo que a maioria não vê. Não se parece em nada à turma do comerciante Chaim Jaber, 58, porta-voz da "pequena república sírio-libanesa" – com folga a tribo mais visível do pedaço. Jaber chegou da Síria, há 25 anos, disposto a comprar um negócio no Novo Mundo – "mas aqui era mais barato". Fez seu pé de meia e mantém três filhos na faculdade com os rendimentos das "lujinhas". É a história de muitos por ali.

O curitibano Eládio é um homem culto, que cultiva antiguidades. Há dez anos, comprou um imóvel erguido em 1906, a "pensão da Olga". O tempo passou, levando o telhado e trazendo toneladas de lixo. "Era uma casa muito engraçada", brinca, diante do prédio restaurado ao custo de R$ 20 mil. Ali funciona seu escritório. "Onde eu ia encontrar um lugar em que posso colher abacates pela janela?"

Alguns metros para cima do "sobrado dos abacates", outro endereço reforça a tese de que há muitas Riachuelos. No número 427, vê-se um casarão estilo francês, erguido em 1952 para abrigar a velhice do ex-deputado federal João Theófilo Gomy Jr. e sua mu­lher, Anita. Até o final da década de 60, a mansão foi palco de casamentos e da finesse dos anfitriões.

Com a morte do casal começou a decadência. O endereço virou mocó. Em 2007, um dos herdeiros, o agrônomo Ernani Bengui Neto, 36, desembolsou R$ 300 mil pelo palacete e chamou uma caçamba para levar 40 caçambas de entulhos. Depois veio a reforma, assinada por Tito Calderari e Carolina Rousseau, e o milagre.

Quem passa pela Riachuelo não desgruda do "427", alvíssimo. Os leões venezianos no terraço sinalizam o fim dos dias ruins. O primeiro inquilino da nova fase é o designer curitibano Kleber Puchaski, 37, idealizador de uma empresa que pesquisa novos designs. "Preciso estar em contato com todos os tipos de gente. Estou no lugar certo", afirma Kleber.

É mais ou menos o que repetem outros personagens das cinco quadras mais surpreendentes do Centro. A produtora de cinema Eloá Petreca, 42, tem em seu currículo os longas Cafundó, de Paulo Betti, e Quanto vale ou é por quilo?, de Sérgio Bianchi, para citar dois. Está na Riachuelo há 12 anos e paga "novecentão" por um dos tantos imóveis do seu Chaim. O espaço tem infra-estrutura precária, mas tem charme. "A baixaria rola nas quadras de cima", diverte-se, referindo-se ao Cine Lido II .

Perto das "quadras de cima" também fica o edifício "Dona Rosinha", erguido em 1949 e com 30 apês. Um deles é da artesã Nilcema Ratim, 45, riachuelense convicta. "Parece haver um pacto. Ninguém mexe com moradores. Já vi cada coisa dessa janela que você nem imagina..."

Bom, Nilcema viu da sacada as filmagens do longa Estômago, de Marcos Jorge. Come nos restaurantes da São Francisco. Anda a pé. Ela lista seu roteiro: "Padaria Amé­rica – cinco quadras; o Guaíra, ali em baixo". Soltar algum elogio à rua é regra cívica, não importa a quadra.

Até a recém-chegada Jéssica Soares, 18, desmancha-se. Ela divide uma quitanda com o namorado. Sabe nada de Cafundó e Estômago. Mas tem vendido muita banana e não sente saudades do antigo endereço, a Vila Camargo, no Cajuru. Eis a graça.

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