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Histórias de bairros costumam ter poucas páginas – quando muito, rendem uma matéria no jornal da paróquia e depois ganham o fundo de uma gaveta, de onde saem apenas para ilustrar lições de escola da criançada. O livro que o curitibano Walmir Brandão, 63 anos, escreve sobre o Santa Quitéria é exceção: tem 600 páginas jurassicamente datilografadas numa Olivetti Studio 46 e não caberia nem no L’Osservatore Romano, o extenso jornal do Vaticano. Quando for publicado, dificilmente servirá de fonte para pesquisas de ginásio. É muito complexo para isso. A vila, afinal, é só uma desculpa para Brandão falar de uma Curitiba pouco estudada – a Curitiba que no final da década de 40 pela primeira vez vai se deparar com a idéia de periferia, surgida com os núcleos populacionais operários, entre eles o Santa Quitéria.

Até então, assegura o historiador das horas vagas, a idéia mais próxima de arrabalde que um curitibano típico tinha eram as colônias polonesas e italianas de Colombo ou São José dos Pinhais. Com o advento de uma dezena de loteamentos da Zona Sul – onde estão também os hoje supervalorizados Vila Isabel e Seminário – inaugura-se oficialmente o subúrbio à moda da casa. Era situado um pouquinho adiante das velhas estradas, como a do Mato Grosso ou Mato do Taborda, e marcado por uma democracia racial que deve ter causado impressão na branca e européia Curitiba que vivia nas alturas – da Glória e do São Francisco. No lugar de colonos em carroças de verduras, vindos de Santa Felicidade, as vilas recém-nascidas vão exportar tipos como o antoninense Waldomiro Brandão, pai de Walmir, operário da fábrica de louças de João Evaristo Trevisan. Mestiço e pobre, o lapidador usava cartola e gravata em qualquer ocasião e dividia mesa de botecos com o filho do patrão, ninguém menos que o hoje escritor Dalton Trevisan.

Segundo Brandão – que guarda num armário que rescinde naftalina pilhas de documentos sobre Santa – a distância não era problema. O governo oferecia lotes de 14 por 33 metros, onde eram construídas casas de alvenaria de 60 metros quadrados, com banheiro interno e esgoto, financiadas pela Caixa de Habitação Popular em 20 anos, consumindo 60% do salário do trabalhador. Os compradores eram caboclos e negros oriundos dos Campos Gerais e litoral – a exemplo de Waldomiro, assim como imigrantes das colônias, em fuga das lavouras de subsistência e "com a intenção de casar as filhas com gente que não fosse das roças". Completavam a arca operários da Colônia Dantas, hoje Rebouças e Água Verde, atraídos pela oportunidade de se livrar do aluguel e morar a menos de cinco quilômetros do emprego. Se não chovesse.

Para traduzir o sentido desse Quilombo sulista, onde se abrigaram os "novos curitibanos", Brandão – ele mesmo um caboclo assumido, casado com Halina Poplavski, alemã de ascendência polonesa – batizou seu livro de Santa Convivência. A idéia, ainda que careça de ajustes, para os quais o autor aguarda a ajuda de um historiador de carreira, é o aspecto mais original da pesquisa, mesmo que não seja inédito. A miscigenação faz parte da formação do Paraná e é tema corrente entre pesquisadores, como atesta o historiador Sérgio Nadalin, da UFPR, estudioso de território. Outra contribuição do trabalho é sugerir que os bairros operários praticamente fundaram a administração pública moderna na cidade, forçando os governantes a lidar com massas de trabalhadores que precisavam de transporte urbano, coleta de lixo e educação. A Praça do Japão não era mais o limite.

"A porta de Curitiba é o Atuba. A elite entrou por ali. Nós estamos no portão e com a gente entrou o progresso. Foi pela Zona Sul que a cidade se urbanizou", Brandão faz trocadilhos, ao explicar por que a história da periferia encontra tão poucos entusiastas. Ele revira obsessivamente a obra de Rocha Pombo, Valfrido Piloto, Dario Vellozo e Sebastião Paraná em busca de referências sobre sua Quitéria – a "Vila dos Sapos", como era conhecida. Quase sempre o esforço é em vão. Em As Tinguianas, de Piloto, por exemplo, encontra a descrição de uma região de sítios com águas maravilhosas, fúcsias, povoados com nomes bizarros, como Camburi, "um verdadeiro presépio." A ausência de fontes o leva à máxima marxista: "O ponto de vista é sempre o dos vencedores".

O cidadão que usa barbas longas e boina à Che Guevara – com uma bandeirinha do Canadá –, porém, não perde a ternura. Mais do que um panfleto libertário, Santa Convivência é um depoimento emocionado sobre um homem e sua aldeia. Na sua fala, uma questão técnica, como a criação da Vila do Ipase, do Ipê, a dos Bancários, a dos Cegos, a Carmela Dutra – cuja identidade se confunde com o Santa Quitéria e sua vizinha, a Vila Iná –, ultrapassa a constatação de que esse movimento mudou a cara da cidade. A sociologia urbana, aqui, vira fábula sobre uma cidade que se reinventou pelas bordas. "Minha preocupação com o bairro me ajuda a pensar a História do Brasil. É uma maneira de saber o que nós somos", arremata Walmir.

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