Lula usa mesma estratégia de grupos defensores do aborto: tratar assunto como “saúde pública” para disfarçar questões morais e éticas.| Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil
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Durante um debate na última terça (5), realizado pela Fundação Perseu Abramo, ligada do Partido dos Trabalhadores (PT), e a Fundação Friedrich Ebert, uma entidade alemã, o ex-presidente Lula disse que o aborto seria "uma questão de saúde pública" a que "todo mundo teria direito". Assustado com a repercussão da fala, que compromete a estratégia petista de se aproximar de eleitores cristãos, dois dias depois, em uma entrevista a uma rádio de Fortaleza, Lula retomou o assunto. E insistiu em uma ideia perigosa e falsa, como alertam as fontes consultadas pela Gazeta do Povo.

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Tentando explicar sua posição, Lula disse ser contra o aborto, mas insistiu em defender que a questão seja transformada em um tema "de saúde pública". Ao longo de sua trajetória política, Lula já deu dezenas de declarações semelhantes, o que deixa claro seu posicionamento. Mas essa posição dualista: para o pré-candidato à presidência da República, é possível ser pessoalmente contra alguma prática e ao mesmo tempo defender que a adoção dela não se sustenta quando se trata da supressão de vidas humanas, como é o caso do aborto.

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"Seria algo como dizer que é pessoalmente contra a escravidão, e ao mesmo tempo admitir que outras pessoas, se quiserem, podem ter escravos", compara Lenise Garcia, professora aposentada do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (​UnB) e presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida Brasil Sem Aborto. Para ela, questões que envolvem direitos humanos - como no caso do aborto, quando há duas vidas distintas envolvidas, a da mãe e também a do bebê em formação - não podem ser tratadas como se fossem temas neutros.

Posicionamento semelhante tem o professor de filosofia Francisco Razzo, autor dos livros Contra o Aborto e A Imaginação Totalitária, e também colunista da Gazeta do Povo. "Quando eu digo que o aborto é um problema de saúde pública, eu estou usando uma forma de linguagem que omite o aspecto moral da questão, como os direitos do embrião e os limites da liberdade humana", afirma o filósofo.

Ele explica que restringir o debate do aborto a uma questão de saúde pública dá a impressão que é possível posicionar-se publicamente contra a prática - como faz Lula - e ao mesmo tempo trabalhar para que seja legalizada. Para que isso funcione, um dos pontos fundamentais é esconder, deixando de abordar e de mostrar imagens, o real significado do aborto. "O aborto é a tomada de decisão de uma mulher de interromper uma gestação e que implica necessariamente na morte deliberada do embrião. É uma morte causada ativamente, não é apenas um 'deixar morrer', mas é efetivamente matar", ressalta Razzo. Por isso, uma vez que envolve uma decisão, e essa envolve a morte do embrião, o debate sobre o aborto passa, necessariamente, pela discussão moral e ética.

Estratégia pró-aborto

O uso do argumento de que o aborto é uma mera “questão de saúde pública”, que desconsidera o fato de que o bebê em formação também é uma vida humana com direitos e merece proteção, é uma das muitas estratégias adotadas pelos movimentos defensores da liberação do aborto. Um artigo publicado na revista Cadernos de Saúde Pública, em 2020, mostra como esse argumento tornou-se predominante entre os grupos defensores da prática. No estudo, a autora, Thais Medina Camargo, estudou a evolução das narrativas pró-aborto no Brasil, no período de 1979 a 2016.

Inicialmente, nos anos 70, a maior parte dos argumentos pró-aborto se baseava na ideia de autonomia da mulher sobre o próprio corpo – posição que anula qualquer direito à vida do bebê em gestação, mas traz em seu cerne uma discussão ética e moral, uma vez que exige a discussão sobre os limites da autodeterminação em relação a outra vida. Como esse argumento não foi bem-sucedido, a partir da década de 80 outra narrativa ganha corpo, a de que o aborto seria "questão de saúde pública".

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Segundo essa narrativa – que é exatamente a mesma usada por Lula em seus discursos –, existiria um grande número de mulheres que fazem aborto, boa parte delas pobres e que recorrem a métodos arriscados para tentar abortar, e que até morrem devido a isso. Como o artigo destaca, esse argumento precisa ser corroborado por autoridades médicas ou estatísticas para ser considerado válido.

“As estatísticas sobre morbidade e, principalmente, mortalidade ligadas ao aborto, ao lado de declarações de organizações de saúde, são centrais nessa narrativa, usadas para apresentar o aborto clandestino como um problema de saúde pública”, diz o texto. Mas os números não são claros sobre o fato da legalização do aborto ser capaz de resolver um problema de saúde pública no Brasil.

Dados falsos

Embora os defensores da liberalização do aborto citem a ocorrência de um número significativo de mortes decorrentes de abortos ilegais, isso não se sustenta em nenhuma base de dados oficiais. No Brasil, hospitais públicos e privados precisam registrar as mortes decorrentes de problemas relacionados à gravidez, parto ou puerpério (período de até 45 dias após o parto) num banco de dados nacional, mantido pelo Ministério da Saúde.

As informações servem justamente para a adoção ou mudança nas políticas públicas de saúde em relação à mortalidade materna. Nesses dados está inserida uma categoria para registro de mortes decorrentes de aborto, que inclui todos os tipos, não apenas os provocados clandestinamente, mas abortos espontâneos e os que são feitos nos casos não punidos em lei. Hoje, não há penalização do aborto quando a gravidez é decorrente de estupro, existe risco à vida da mulher ou o feto tem anencefalia.

Segundo esses números, de 1996 a 2018, no país inteiro foram registrados um total de 38.919 óbitos maternos; destes, 1.896 foram em decorrência de aborto, o que dá uma média de 87 mortes por ano. Mais uma vez, é importante frisar que se trata de mortes por aborto não apenas provocados, mas também naturais e as exceções de punibilidade previstas na lei. Não existe um banco de dados específico sobre abortos clandestinos. E ainda que esses números representassem casos de mortes por aborto provocado ilegalmente, estariam muito abaixo do que ativistas pró-aborto alegam.

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Em 2018, por exemplo, funcionários do Ministério da Saúde, em nota técnica enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, sobre a legalização do aborto no Brasil, alegaram que, em 2016, 206 mortes por aborto teriam acontecido, e dessas, 203 foram por causa de abortos clandestinos. O dado é falso, uma vez que o mesmo Ministério da Saúde informou que o maior número anual de mortes por aborto no Brasil foi registrado em 2010, com 154 casos. “É claro que a perda da vida dessas mulheres importa, é preciso ter atenção a cada uma dessas mortes, mas esse número não configura uma ‘questão de saúde pública’ como querem alguns”, salienta Lenise.

Também é questionável, ressalta Razzo, usar apenas as estatísticas para justificar a adoção de determinadas ações ou políticas públicas. "Não é porque existem homicídios que a gente tem de liberar os homicídios", ressalta o filósofo. "Discutir o aborto como saúde pública é negligenciar um problema sério, do aborto em si, do estatuto do embrião, da liberdade da mulher livre e também o problema da moralidade", afirma.

Tentativa de deslocar foco da discussão

Quando o debate sobre o aborto se reduz ao prisma da saúde pública – amparado em dados falsos –, os direitos dos bebês em formação não são debatidos, colocando-se em primeiro lugar a segurança da mulher que, supostamente, por não ter acesso ao "aborto legalizado" - o que não existe no Brasil -, vai acabar morrendo ou tendo problemas de saúde por fazer um aborto clandestino.

Com esse viés, a legalização do aborto é vendida como uma forma de garantia de saúde para as mulheres, ou ainda uma obrigação do Estado, da mesma forma como cabe ao Estado garantir o acesso à saúde em geral. O aborto, uma operação complexa que necessariamente envolve uma discussão moral e ética, passa a ser defendido como se fosse qualquer outro procedimento de saúde disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), como uma extração dentária ou uma aplicação de vacina.

Ao mesmo tempo, deixam-se de lado a discussão de outras formas de apoio às mulheres possíveis de ser aplicadas pelo Estado, como programas de maternidade/paternidade responsável; políticas de planejamento familiar ou mesmo amparo direto às mulheres grávidas em condições de vulnerabilidade. Aliás, iniciativas parlamentares e governamentais nesse sentido são vistas com muita resistência por ativistas. Um exemplo foi o empenho de setores progressistas em criticar a campanha "Tudo tem seu tempo: adolescência primeiro, gravidez depois", desenvolvida pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, para tentar diminui os índices de gravidez na adolescência. "De qualquer forma, acho importante que as pessoas, principalmente os eleitores, saibam qual é a posição de Lula - e de outros políticos - sobre o aborto. Acho ótimo, na verdade. Só assim é possível votar bem", destaca Lenise.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]