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São Paulo – A estratégia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para montar sua base política vai desembocar num "dá cá, toma lá", afirmou em entrevista o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, 76 anos. Ele disse ter a impressão de que, após a reeleição, Lula "perdeu a pressa", o que o leva "a se enrolar no jogo partidário com certa bonomia".

FHC disse não se irritar com as provocações do atual presidente e confessou: "Eu também gosto de provocá-lo, sem ressentimentos nem agressões pessoais." A sério, opinou que os dois deveriam conversar com mais assiduidade, mas isso não ocorre por culpa de setores do PT. Arrematou: "O presidente não é um homem de generosidades, nem mesmo de amabilidades com quem possa parecer competidor."

Fernando Henrique revelou que gostaria de ter antecipado as mudanças no regime cambial e avançado mais na reforma política. Ele está em campanha aberta pela adoção do voto distrital como primeiro passo para a reforma política.

Por que o sr. defende o voto distrital como ponto de partida da reforma política?FHC – Porque ele representa o mecanismo que mais diretamente põe em xeque o sistema atual. Quebra a espinha dorsal das acomodações partidárias e leva à maior proximidade entre o eleitor e o eleito. No sistema atual, o eleitor paulista, por exemplo, escolhe um entre mais de mil candidatos, que pescam o voto em um eleitorado de mais de 25 milhões de pessoas. No voto distrital, cada partido só pode apresentar um candidato por distrito. O eleitor escolhe entre poucos candidatos e conhecerá melhor a pessoa em quem vota.

O voto distrital não "paroquializa" a política?Nós já temos um sistema paroquial funcionando. Pior, um misto entre paroquialismo e lobbies, pois boa parte dos deputados se elege em função de máquinas – partidárias, de prefeituras, de igrejas, de sindicatos, de empresas –, muito mais do que do apoio direto dos cidadãos. Com o voto distrital, embora a representação de interesses possa continuar – e ela pode ser legítima –, o candidato terá de se dirigir aos eleitores.

O sr. propõe o engajamento da população no debate, como aconteceu nas Diretas-Já. Não é um tema muito árido para as massas?O povo está cansado de corrupção, de impunidade e do custo das campanhas eleitorais. Haveria que mostrar aos eleitores como e porque o voto distrital ajuda a combater esses males. Eu propus também que se começasse pelas eleições de vereadores, nas quais é mais fácil para o eleitor perceber que no atual sistema ele pode não ter representante de seu bairro ou cidade e, portanto, não teria de quem cobrar eventuais desmandos praticados.

Muita gente defende o sistema de voto por listas. Ele não fortalece as oligarquias partidárias?Sem dúvida, o voto por listas fortalece as oligarquias partidárias. De qualquer modo, teria a vantagem de ser um primeiro passo para quebrar o atual sistema. Mas há modos de amenizar o controle dos chefes partidários. Na Bélgica, por exemplo, o partido apresenta as listas, mas o eleitor pode mudar a ordem, assinalando não apenas que vota na legenda, mas em que deputado.

O presidente Lula busca formar sua base de apoio no PMDB e atraindo partidos fisiológicos. Onde desemboca essa estratégia?A estratégia de obter uma base "superônibus", sem uma agenda legislativa definida e sem apoio da sociedade desemboca na mesmice de sempre: o dá cá, toma lá.

O sr. disse que o programa Bolsa-Família é uma concessão do "pai da pátria" e que, por ele, o povo paga com o voto. Como enfrentar essa formidável máquina com 23 milhões de eleitores listados?Houve uma deturpação dos programas que eu chamava, com duplo sentido, de rede de proteção social. No meu governo, havia a insistência em dois pontos-chave: primeiro, que os programas eram um direito dos cidadãos; segundo, que eles buscavam a promoção social. No atual governo, todos os programas do meu governo foram fundidos num só, o Bolsa–Família, e os controles foram reduzidos. Pior ainda, a propaganda oficial direcionou uma ação que deveria consolidar os direitos da cidadania a um gesto político do presidente. Ele é quem "dá" o auxílio. É difícil, mas não impossível, mostrar à sociedade que o personalismo político é um atraso antidemocrático.

Já se vão quase três meses da posse e só agora Lula conclui a reforma do ministério. Reforma ministerial é assim mesmo, tão difícil?Tenho a impressão de que o presidente, com a vitória no segundo turno, perdeu a pressa em geral. Isso, somado à preocupação de obter uma superbase, leva-o a se enrolar no jogo partidário com certa bonomia. Mesmo porque a administração segue na rotina, e a economia vai adiante embasada nas reformas do passado e nos ventos do boom econômico mundial.

O presidente insiste em comparações do governo dele com o seu, naturalmente quando lhe são favoráveis. O senhor resiste à tentação de fazer o mesmo?Eu acho que os governos passam. O que se diz no calor da hora com comparações arbitrárias favoráveis a este ou ao governo anterior conta pouco. O que realmente importa é criar situações que abram espaços novos e melhores para o Brasil. Cada governo enfrenta desafios diferentes, mais ainda nos dias que correm em que os fatores globais pesam tanto. Acho mais prudente deixar a tarefa das comparações para os historiadores no futuro.

Dizem que Lula se chateia quando o senhor o critica. O senhor se irrita quando ele o provoca?Eu não me aborreço com as provocações do presidente. Já não me aborrecia antes, quando ele criticava acidamente as políticas econômico-financeiras de meu governo – que ele agora segue. Por que haveria de me preocupar com as provocações? Elas fazem parte do jogo político. Eu também gosto de provocá-lo, sem ressentimento nem agressões pessoais.

Não seria de esperar que os dois presidentes reeleitos, que vieram de uma matriz política tão próxima – o senhor chegou a cogitar de se filiar ao PT –, conversassem mais? Por que isso não tem ocorrido?Isso deveria ter acontecido desde 2003. Infelizmente, o eleitoralismo de setores do PT fez com que o PSDB fosse definido mais do que adversário, como inimigo, e eu, como símbolo dessa situação de animosidade. O presidente não é homem de generosidade, nem mesmo de amabilidade, com quem possa parecer seu competidor.

Em seus dois governos, o que deveria ter feito e não fez?Poderia, como disse em outras ocasiões, ter antecipado as mudanças de regime cambial. Poderia, eventualmente, ter avançado mais nas reformas, inclusive, na política. Enfim, poderia ter feito mais e melhor. Só que é mais fácil ser engenheiro de obras feitas do que fazê-las, principalmente quando se trata de mudar o rumo das coisas, como tentei fazer nos meus dois mandatos, com graus variáveis de sucessos e desilusões, mas com avanços que me parecem inegáveis e que, espero, sirvam de base para avanços ainda maiores.

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