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Protesto conta o lockdown em Dublin, capital da Irlanda, em 17 de março
Protesto conta o lockdown em Dublin, capital da Irlanda, em 17 de março| Foto: PAUL FAITH / AFP

Vivemos em tempos estranhos. Depositamos uma saudável confiança social nos critérios da divisão tripartite do poder, da racionalidade cartesiana científica e da capacidade weberiana de gestão governamental, ao mesmo tempo em que, cegamente, contamos que a soma de tudo isso necessariamente irá resolver os problemas gerados pela crise sanitária a que assistimos. Como se fosse uma equação matemática, em que o acerto das variáveis produz a exatidão no resultado.

Um bom exemplo destes critérios – que ajudam muito, mas não são o penhor de um resultado líquido e certo – está no destaque que fazemos no voto do ministro Marco Aurélio na ADI 6341: “(...) as medidas adotadas pelas autoridades governamentais no combate à pandemia de Covid-19 devem ser devidamente motivadas, obedecer aos critérios da Organização Mundial da Saúde e gozar de respaldo científico”.

Contudo, estamos a falar de práxis política, uma dinâmica que não funciona exatamente nos termos da teoria política, porque envolve inúmeras respostas e deliberações quanto aos meios necessários e adequados para que, segundo as contingências históricas, alcance-se o bem comum concretamente considerado. E as respostas e deliberações podem ser boas ou ruins na medida em que atendam ou não aos bens humanos políticos em jogo.

Se “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei” (artigo 5º, inciso II, da CF/88), então, como pode, em tese, um decreto do Executivo estadual ou municipal, carente de uma proporcional motivação com base em razões públicas (falta de leitos hospitalares, por exemplo), impedir o livre exercício da profissão ou do gozo da propriedade e até mesmo restringir a livre locomoção em tempo de paz, liberdades públicas amparadas pelo mesmo artigo citado?

Salvo nas hipóteses de decretação de estado de defesa ou de estado de sítio (artigos 136 e 137 da CF/88), um decreto do Executivo estadual ou municipal não pode substituir aquilo que compete exclusivamente ao presidente e com aprovação do parlamento nacional, isto é, nem mesmo uma lei ordinária poderia impor estado de defesa ou de sítio, porque demanda, originariamente, um decreto presidencial estabelecendo os limites das restrições aplicáveis aos direitos fundamentais para, depois, ser submetido à aprovação pelos congressistas.

Dito de outra maneira, ao menos quanto às liberdades fundamentais acima indicadas, quando um decreto estadual ou municipal inova ao legislar ou criar obrigações não previstas em lei, tal decreto, no jargão jurídico, é inconstitucional e, por isso, não vincula o destinatário da normativa, no caso, o cidadão, porque é nulo de pleno direito e, no jargão filosófico, o mesmo decreto é um flátulo hermenêutico.

Por ora, andou muito bem o juiz Giovani Augusto Serra Azul Guimarães que, segundo a reportagem feita por este jornal, em sua decisão, relaxou a prisão em flagrante de um cidadão que resolveu manter seu comércio aberto, em suposta desobediência ao decreto do Executivo paulista que ordenou o fechamento do comércio na “fase emergencial” da pandemia do Covid-19, um típico exemplo do decreto nulo e flatuoso a que já nos referimos.

Se o ilustre magistrado deu o exemplo, o que o cidadão poderia fazer – legitimamente – em tempos de decretos executivos nulos e flatuosos? Ditaduras não são o único tipo de opressão política. Sistemas de opressão social e econômica também existem. Em conflitos entre uma opressão e uma população dominada, é necessário que o povo determine se deseja simplesmente condenar a opressão, protestar contra o sistema ou realmente acabar com a opressão e substituí-la por uma sistema de maior liberdade e justiça.

No ano passado, tive a grata satisfação de traduzir um conjunto de três obras de um mesmo autor que, inspirado na linha filosófico-política de Thoreau, parece-nos capaz de oferecer respostas, em termos de práxis política, sérias, civilizadas e concretas para alguns conflitos que não cedem a compromissos e que se encaminham, diante do grau de divergência irreconciliável, para a solução da luta não-violenta.

Trata-se de Gene Sharp, publicado aqui no Brasil pelos livros Da ditadura à democracia e Como a luta não-violenta funciona & Autolibertação (Vide Editorial, 2021), cujas obras compilam uma espécie de manual de práxis política não-violenta, aplicado à risca na Primavera Árabe à Angola de José dos Santos, na Sérvia de Milosevic à Birmânia ditatorial e no Occupy Wall Street. Estas três obras foram um verdadeiro viral antes de haver Internet.

Gene Sharp, eminente referencial teórico na área de estudos de ação estratégica não-violenta – traduzimos apenas três de cerca de 30 obras de sua autoria, muitas delas transliteradas para mais de 50 línguas –, cataloga 198 métodos de resistência não-violenta, porque, segundo ele, no prefácio de um dos livros traduzidos, “procedimentos institucionais regulares raramente estão disponíveis para resolver conflitos que, de uma maneira ou de outra, envolvam os princípios fundamentais de uma sociedade, de independência, de respeito próprio ou da capacidade das pessoas de determinar seu próprio futuro”.

O conceito básico e a base da luta política por meio de ações não-violentas apoiam-se na crença de que, nos termos do autor, “o exercício do poder depende do consentimento dos governados que, por retirar esse consentimento em situações de opressão, podem controlar e até neutralizar o poder de seus governantes”.

Apenas a título de exemplo, o comerciante, que teve sua prisão relaxada pelo magistrado citado, valeu-se do método 141 – desobediência civil de leis ilegítimas –, sendo que Gene Sharp ainda lista mais outros sete métodos no tópico “alternativa dos cidadãos à obediência”: cumprimento relutante e lento, não-obediência na ausência de supervisão direta, não obediência semi-oculta, desobediência disfarçada, recusa de reunião a dispersar, sitdown e não-cooperação com recrutamento.

Evidente que a ação não-violenta é uma forma de práxis política para tentar tornar certos comportamentos sociais não-recompensatórios para seus titulares ou mesmo recompensatórios para se fazer outras coisas dotadas de legalidade formal. Pode ser mal utilizada, maltratada, mal aplicada e mesmo desvirtuada para propósitos que não compactuem com o bem comum concreto e histórico.

Aqui, entra em campo a prudência, definida por Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, como sendo a disposição prática acompanhada da regra verdadeira concernente ao que é bom ou mau para o homem. Dito de outra forma, como um saber da práxis humana, a prudência deve dirigir-se a uma finalidade concernente à reta razão, o que supõe, por parte do indivíduo, conhecer a natureza da coisa a que se dirige e seu fim (telos).

Por isso, antes, ele deve determinar, no âmbito da inteligência especulativa, a verdade prática a ser aqui e agora concretizada, deliberar acerca dos meios necessários e adequados para a consecução dessa verdade na práxis política e, depois, agir em conformidade com aquela determinação por intermédio de um comando à vontade.

Fora dessa dinâmica humana, a prudência não só deixaria de ser uma ciência prática, mas uma própria ciência, na medida em que o simples conhecimento prático deixaria de ser verdadeiramente prático e se transformaria numa espécie de bússola desmagnetizada: indicaria o acaso e não mais a direção na busca da verdade na práxis política.

Thoreau sustenta que um indivíduo governado converte-se em cúmplice da injustiça política governamental se a ela não se opõe, obstruindo-a com sua ação política e não apenas por meio de protestos verbais. Mas ele ressalva, corretamente, que esta ação nunca deve ser violenta e que a lealdade devida a um governo legítimo, ainda que ocasionalmente injusto, deve nos manter dispostos a aceitar a eventual sanção que a autoridade nos imponha por desobedecê-la, sem prejuízo de discuti-la judicialmente depois.

A autolibertação, que muitos clamam por aí numa época em que, literalmente, “sobrevivemos”, demanda, sobretudo, a superação de nossa habitual atitude de indiferença política e, em alguns casos mais patológicos, o fim de nossa adesão subserviente ao poder estatal, sobretudo aqui nos Trópicos, onde o pendor pela estatolatria, como bem recorda Roberto Campos, retroage a um certo atavismo colonial.

Se o bravo juiz Giovani Guimarães superou a apatia judicial que muitos indivíduos constatam nesta realidade pandêmica, precisaremos notar se, amparado pelas ideias políticas de Gene Sharp e Thoreau, devidamente temperadas pela prudência aristotélica e com vistas ao bem comum, o cidadão, por sua vez, sucumbirá àquela indiferença ou dela se emancipará. Se “ainda temos juízes em Berlim”, resta-nos saber se podemos dizer o mesmo dos cidadãos do Brasil.

* André Gonçalves Fernandes, post Ph.D., é professor-coordenador de Filosofia e Metodologia do Direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp e professor-visitante da Universidade de Navarra (Espanha).

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