A determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de desativar hospitais de custódia e de tratamento psiquiátrico para pessoas com transtornos e doenças mentais que cometeram crimes, até maio do ano que vem, traz riscos para os próprios doentes e para a sociedade. Segundo especialistas, como não há uma estrutura adequada para atender esses doentes mentais na Rede de Atenção Psicossocial (Raps), indicada pelo CNJ para substituir os manicômios judiciários, a resolução facilitará a liberação desses pacientes, muitos deles sem condições de estar em convívio social.
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A resolução n°487 do CNJ, assinada pela ministra Rosa Weber em 15 de fevereiro de 2023, segue as diretrizes do chamado movimento antimanicomial e quer dar a pessoas com transtornos mentais que cometeram crimes a possibilidade de “reabilitação psicossocial assistida em meio aberto”. Os pacientes que estavam nos manicômios judiciários (por terem cometido crimes, mas serem considerados inimputáveis), por mais graves que sejam o seu comportamento e seus atos, serão monitorados e assistidos apenas pela Raps.
Conforme a resolução, a partir de agora, essas pessoas devem ter o cumprimento da pena em prisão domiciliar, monitoração eletrônica ou outras medidas em meio aberto. Em “hipóteses absolutamente excepcionais”, elas podem ser internadas, não mais em manicômios judiciários, mas em hospitais gerais ou ambientes referenciados pelo Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Isso significa que pacientes com transtornos mentais e que cometeram crimes serão internados com quem não tem esse perfil.
O CNJ estabeleceu ainda que “nenhuma pessoa com transtorno mental seja colocada ou mantida em unidade prisional, ainda que em enfermaria, ou seja submetida à internação em instituições com características asilares”.
A resolução desencadeou uma série de críticas de especialistas, que temem a falta de atendimento adequado a esses pacientes e riscos para a segurança pública. A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) publicou uma nota de repúdio afirmando que as diretrizes do CNJ não representam o tratamento adequado para esses pacientes e que podem trazer “grande prejuízo à saúde pública”. “Gerando grande risco para a sociedade em geral e, principalmente, perigo para os familiares, profissionais da saúde e pessoas que com eles convivem”, destaca a ABP.
“Não existe nada mais anticientífico do que a luta antimanicomial”, diz psiquiatra
Historicamente, a assistência a pessoas com transtornos mentais foi precária no Brasil. Antigamente, os doentes mentais eram vistos como um problema para o qual a única solução viável era encerrá-los em hospícios. Há relatos e histórias de pessoas internadas em manicômios à força, vítimas de violência, como relata a jornalista Daniela Arbex no livro “Holocausto Brasileiro”.
Com o passar dos anos, houve uma reorganização no sistema, com o fechamento de manicômios, principalmente após a reforma psiquiátrica, instituída pela Lei n°10.216, de 2001.
Se o movimento antimanicomial conseguiu reduzir abusos dos antigos hospitais, teve um efeito negativo perigoso e ainda não resolvido: a falta de leitos psiquiátricos para pessoas com alterações violentas que precisam de internação. Apesar de a lei prever a possibilidade de internação voluntária, involuntária e compulsória como forma de tratamento, entre 2005 e 2016, o Brasil perdeu quase 40% de leitos psiquiátricos para atendimento de pacientes no âmbito da rede pública, segundo informações do Conselho Federal de Medicina (CFM).
“Hoje o Brasil é um dos países com menores taxas de leitos psiquiátricos do mundo. Há 10 vezes menos leitos psiquiátricos, proporcionalmente com a população, em comparação com os países da OCDE”, diz Quirino Cordeiro, médico psiquiatra e ex-Secretário de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania e ex-Coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde.
Segundo ele, os abusos e a violência dos antigos hospícios de fato têm de continuar a ser combatidos. Em geral, as internações são breves, para que o indivíduo se recupere e possa sair logo. O problema é aproveitar esse cenário como pretexto para defender teses sem fundamento, como a de que não houvesse a necessidade de internação em alguns casos, principalmente para quem pode exceder-se e cometer atos de violência.
“Para onde vão os pedófilos, agressores sexuais com alto risco de voltar a cometer os mesmos crimes, os assassinos em série que estão nesse serviço? É uma atitude irresponsável do CNJ que não tem respaldo científico. Traz problemas para os pacientes e para a sociedade”, destaca.
Cordeiro afirma ainda que a diminuição de leitos psiquiátricos pode acarretar um aumento da taxa de suicídio desses pacientes, de violência e encarceramento.
“Se não tiver tratamento adequado, essas pessoas apresentam chance de serem agentes de violência e vítimas de violência. Essa resolução não vai cuidar dos pacientes, vai jogar essas pessoas em situação grave para uma situação de desassistência”, diz. “Não existe nada mais anticientífico do que a luta antimanicomial, é um movimento ideológico que não leva em consideração dados científicos, fatos e a vida como ela é”, complementa Cordeiro.
Sistema inadequado e sem estrutura
A resolução determina que esses pacientes com transtornos e com problemas na lei serão encaminhados de forma voluntária para a Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Porém, especialistas ressaltam que o sistema Raps já não consegue atender a demanda atual. “É muito difícil pensar que uma decisão não terá impacto, o sistema já não dá conta do que tem”, afirma Pablo Kurlander, psicólogo e doutor em saúde coletiva.
O especialista aponta que a estrutura existente é insuficiente em quantidade e em qualidade. Sobre a decisão do CNJ, Kurlander destaca que além de ser “utópica”, merece atenção. “Na prática, é preciso ter uma estrutura preparada para ter uma determinação desse tipo, no nosso cenário, não vejo que terá um impacto positivo”, diz.
O médico Quirino Cordeiro afirma que os hospitais de custódia não têm conseguido atender à demanda de necessidade de leitos psiquiátricos, com muitas filas de espera. Para ele, embora seja inegável que essas instituições precisem ser melhoradas, não é a desativação que vai resolver o problema.
“É preciso estabelecer ambulatórios especializados no manejo desses pacientes. Sempre trabalhar para melhorar a qualidade de serviço. E isso não se faz interrompendo um sistema e fazendo uma política de ‘faz de conta’, pois não tem relação com a realidade”, diz o especialista.
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Outro lado
O Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afirmou à reportagem que a resolução foi discutida por quase dois anos em um grupo de trabalho instituído pelo CNJ. O grupo contou com representantes da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Sobre a estrutura da Raps, o CNJ disse que há insuficiência de vagas no sistema prisional também. “A ideia é que com o fechamento de leitos em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, os poderes públicos competentes possam fomentar investimento de recursos em equipamentos da saúde”.
“A ideia é que os pacientes tenham tratamento de saúde mental adequado e não em manicômios que deveriam ter sido extintos há pelo menos 20 anos, de acordo com as bases da Reforma Psiquiátrica do Brasil”, apontou o CNJ. O órgão evidenciou que o doente mental é considerado inimputável e, com isso, deve receber tratamento médico como os demais pacientes. “Devendo receber tratamento adequado para o caso, com estrita observação da execução da medida pelo Judiciário, que deve tomar todas as providências necessárias e recomendadas pelas equipes de saúde para garantir a saúde e segurança de todos”.
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