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A Central do Cidadão e Atendimento do Supremo Tribunal Federal recebeu 22.429 relatos em 2010 |
A Central do Cidadão e Atendimento do Supremo Tribunal Federal recebeu 22.429 relatos em 2010| Foto:

Depoimento

Rodrigo Carlos de Oliveira, 34 anos, cumpre pena na Penitenciária Central do Estado, em Piraquara, região metropolitana de Curitiba

Oportunidade

"Eu fui preso por roubo. O último crime que eu cometi aconteceu há seis anos e meio – o tempo que estou aqui. Antes eu já tinha cometido outros roubos. Esse foi o quarto. No total, já foram quase 11 anos intercalando liberdade (às vezes concedida, às vezes como fugitivo) e cumprimento de pena. Eu concluí o ensino médio no sistema penitenciário na outra vez que estive preso, mas eu comecei a ler uns livros e estudar mais mesmo neste retorno. O tempo que eu havia cumprido anteriormente não tinha sido suficiente para eu me conscientizar. Essa última condenação foi pesada. Por quatro crimes – roubo de veículo, tentativa de roubo de joalheria, formação de quadrilha e uso de documento falso – recebi 21 anos. Quando levei essa pancada parece que alguma coisa mudou. Quando você se sente acuado, você tem uma tendência a reagir.

Faço as petições com um pouco de conhecimento e um pouco de intuição. Não se tem um Código Penal em mãos, mas você assiste televisão, tem acesso a alguns textos. Eventualmente, você coloca a mão em algum livro, acaba lendo e se instruindo. O habeas corpus dá voz a pessoas que não teriam voz até então, mas não é todo mundo que compreende a grandiosidade de poder pleitear os seus direitos. Os presos ainda desacreditam muito neste negócio de pleito pessoal, porque têm impressão que não vai ser dado o mesmo valor do que o executado por um advogado. A maioria nem tenta. Mas a natureza de alguns é de ser mais inquietos.

Eu escrevi uns 10 HCs [habeas corpus]. Só para os colegas. Para mim eu nunca fiz, porque nunca houve necessidade. Tem muito que se discutir entre os presos para ver o que dá para mudar na situação de cada um. Houve um pleito que eu fiz de regime semi aberto para o Tribunal de Justiça alegando excesso de prazo. O preso já tinha feito o pedido de progressão, mas não havia celeridade no andamento. Com o habeas corpus, ele conseguiu ir para o semi aberto. Você chega a se sentir bem. Você deu liberdade para alguém."

  • Habeas corpus escrito à mão por preso de São Paulo recebido pelo Supremo Tribunal Federal
  • Carta de agradecimento enviada ao Supremo Tribunal Federal

Ele pode ser manuscrito ou digitado. Não necessariamente por um advogado. E pode ser feito, como diz a lenda no meio jurídico, até em papel higiênico. O habeas corpus (HC) é um instrumento constitucional único que garante a liberdade e o direito de ir e vir, pois pode ser protocolado por qualquer um, ao contrário das outras petições e recursos jurídicos. E os principais usuários desse artifício acabam sendo, na prática, os próprios presos. Eles foram responsáveis por 899 habeas corpus impetrados no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, o equivalente a 21% do total de HCs que deram entrada na Corte Superior no ano passado. Em novembro e dezembro, o porcentual de habeas corpus impetrados por presos no STF chegou a quase 40% e em janeiro deste ano a quase 60%. Engana-se quem pensa que os habeas corpus escritos pelos presos não são analisados ou são vistos de forma diferente. "Quando esses HCs chegam, analisamos se estão presentes os pressupostos processuais, autuamos e encaminhamos para o ministro presidente. Quando a competência [do STF] não é reconhecida, encaminhamos para o tribunal competente. Mas damos uma resposta a todas as cartas que chegam aqui", explica a secretária responsável pela Central do Cidadão e Atendimento do STF, Marisa Alonso.

O STF não tem uma estatística de quantos HCs destes são deferidos, mas houve um que ficou emblemático: o habeas corpus 82959-7, impetrado por um pastor condenado a 16 anos de prisão, em São Paulo, por molestar quatro crianças. O pedido dele ajudou a mudar o entendimento da corte sobre a progressão de regime no caso de crimes hediondos. A lei de crimes hediondos, na época, proibia a progressão. Em seu pedido, o pastor invocou princípios constitucionais, como o da individualização da pena, e foi atendido pelos ministros. "Se até torturador pode progredir no sistema, por que eu não poderia?", declarou na época o pastor.

O caso ficou famoso ao ajudar a declarar inconstitucional o dispositivo que proibia a progressão de regime para crimes hediondos e ao influenciar o Legislativo. "Depois desse julgamento, o Congresso Nacional resolveu modificar a lei de crimes hediondos a fim de permitir a progressão de regime", diz o professor de direito penal do Centro de Estudos Jurídico de Salvador e do Curso Jurídico Leandro Gesteira.

O pastor não foi o único que fez história. Condenado a cumprir pena por sonegar impostos em São Paulo, um administrador de empresas afirma ter escrito mais de 3 mil cartas quando esteve preso, entre janeiro de 2009 e agosto de 2010. Segundo ele, redigir HCs para companheiros de prisão era uma forma de passar o tempo. Em troca, ganhou presentes como maços de cigarro e sabonetes.

Quem também se vangloria de ter escrito muito HC enquanto esteve preso é Marcelo Nascimento da Rocha. Conhecido por ser "o maior picareta do Brasil", ele é vivido pelo ator Wagner Moura no filme VIPs, em cartaz nos cinemas. "Conheço as leis por ser chato. Li muito sobre Código Penal, leis de execuções penais, tudo. Fiz muito pedido, coloquei muito preso em regime semiaberto. Entrava com habeas corpus, fazia melhor que advogado do sistema", disse Rocha à jornalista Mariana Caltabiano para o livro que deu origem ao filme.

Esse companheirismo entre os presos é comum. Os detentos com mais conhecimento e mais instruídos acabam servindo de "escribas". "Sempre tem um preso mais letrado, capaz de fazer uma correspondência mais adequada. Aí eles fazem cartas ‘atirando’ para todos os lados, TJ [Tribunal de Justiça], STF, STJ [Superior Tribunal de Justiça], para ver o que conseguem", afirma Gesteira. Não raro, os habeas corpus são tão bemfeitos que nem parece que não houve uma assistência técnica de um advogado.

No ano passado, os presos do Paraná enviaram 22 HCs para o STF. O Tribunal de Justiça do Paraná não tem estatísticas a esse respeito. "O Paraná, por exemplo, não tem uma Defensoria Pública e nem todo mundo tem condição de pagar advogado. Então, o HC é uma peça vantajosa", avalia Gesteira. "O HC é um instrumento democrático. Qualquer pessoa pode fazer o pedido de liberdade, de ir e vir. É importante ter esta porta aberta", analisa Marisa.

Para a professora de direito processual penal da Universidade Federal do Paraná Clara Maria Roman Borges, é importante a previsão constitucional de que o HC possa ser impetrado mesmo sem advogado, mesmo assim, ela diz que o ideal é que seja feito por um profissional habilitado. "Quando chega um HC feito por um preso, o ideal é que o juiz nomeie um defensor para ele, porque o direito de ampla defesa inclui a defesa técnica. Isso é importante para que a ‘peça’ seja feito feita com os argumentos adequados", opina.* * * * *

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