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Quase tudo o que você sabe sobre médicos está errado. Profissionais da Medicina não são estrelas nem ficam ricos na vigésima consulta. Provavelmente, nem após a milionésima. Quando a secretária diz "o doutor viajou", a chance é de nove em dez de que esteja num congresso, tenha pagado as despesas do próprio bolso e que se sinta estressado. Até porque, de volta para casa não vai trabalhar menos do que 12 horas por dia, em dois ou três empregos, sem contar os plantões, que não seguem nenhum estatuto e podem coincidir, acumulando mais de 60 horas de lida semanal. Ao cansaço físico soma-se o psicológico, causado pela relação difícil com planos de saúde, medo de processos e, vez ou outra, ameaça de agressão por familiares de pacientes.

Não há estatísticas sobre o estado de saúde dos 18 mil médicos do Paraná, mas entre os profissionais o consenso é de que a categoria concorre a uma vaga na fila dos hipertensos, enfartados ou neuróticos anônimos. O diagnóstico transparece em duas pesquisas – uma da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de 2005, e outra do Conselho Federal de Medicina (CFM), de 2003. Parte dos resultados são confirmados em conversas com uma dezena de médicos. A novidade é que eles querem falar a respeito, contrariando a aura de onipotência e corporativismo que os ronda.

"Nossa situação é uma bomba armada. Pode ser detonada a qualquer momento", define Hamílton Wagner, 50 anos, médico da Unidade de Saúde CIC, membro do grupo dos que trabalham 12 horas e um pouco mais. Só não deu guerra ainda porque a cultura do heroísmo e da solidão ainda faz dos médicos uma das categorias mais auto-suficientes. "Os médicos não estão mobilizados. Aceitamos fazer 120 mil consultas por ano e receber do SUS apenas 80 mil. Mas temos de atender, porque medicina é sacerdócio. A situação, contudo, tende a deixar o profissional impessoal e mecânico", constata o obstetra Edson Tristão, 54 anos, do Hospital de Clínicas (HC). "Infelizmente, nos falta o senso do coletivo. Não nos unimos num colegiado. E pensar que ainda há quem nos chame de máfia de branco", comenta Élcio Bertolozzi Soares, 61 anos, presidente do Conselho Regional de Medicina (CRM).

As incontáveis horas de trabalho e a maneira anárquica como são divididas são um sinal de que a mentalidade sindical não faz parte da rotina de hospitais e consultórios. Pesquisa do CFM mostra que dos 1.992 médicos consultados no Sul do país, 56% têm duas ou três atividades e que 53,8% trabalham em regime de plantão. Ou seja, é verdade que "o doutor não está" ou "teve de desmarcar". Não raro, a noite em claro num hospital coincide com o dia em claro em outro, superando o limite de horas a postos recomendado para um ser humano.

Uma das explicações para o desgaste do exercício da medicina é que a expectativa de ascensão social é tão alta que muitos se dispõem a se virar do avesso para satisfazê-la. Daí se candidatarem até para o plantão de amigos e atenderem sábado à tarde por convênios. A outra explicação é a de que ninguém no Brasil de juros diabólicos recusaria uma oferta de emprego, mesmo em prejuízo da saúde, da família e dos estudos. Sobram argumentos a favor dessa hipótese.

Carga extra

Segundo o CFM, o desemprego na área não chega a 1%, para alegria de 300 mil diplomados. Além do mais, 72% dos médicos têm até 45 anos de idade apenas. No Paraná, são cerca de 700 jovens formados por ano. Mas é mais fácil encontrar a cura da aids do que alguém que concorde com esse raciocínio.

"Quem trabalha demais é mal-remunerado. Eu faço pesquisa, não ganho bem, mas essa opção me satisfaz. É preciso ter os pés no chão. Não dá para enriquecer na Medicina", opina Nazah Cherif Youssef, 38 anos, intensivista do Hospital de Clínicas (HC). Luiz Carlos Von Dahten, 47 anos, cirurgião do aparelho digestino no Hospital Cajuru, idem. Ele lembra que há muito tempo a profissão deixou de ser fonte de fama e fortuna. "Em alguns ramos de atividade, inclusive, deixa até de ser ético", pontua. Para Paulo Roberto Cruz Marchetti, 53 anos, cardiologista e intensivista do HC, a tese do olho maior do que a cara é fácil de desmontar. "Basta perguntar por que médico não tira férias. Porque quando não produz, não ganha. Há empregos, mas são instáveis", acrescenta Marchetti.

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