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Agredida na prisão

Missionária evangélica completa 2 anos presa sem provas de participação violenta no 8 de janeiro

Eliene, presa por participação nos atos de 8 de janeiro
Eliene Amorim de Jesus está presa preventivamente desde março de 2023, sem nenhuma prova de participação nas depredações (Foto: Arquivo pessoal)

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O caso da cabeleireira Débora Rodrigues, que ficou presa por dois anos por ter escrito a frase “Perdeu, mané” com batom na estátua da Justiça em frente à sede do Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 8 de janeiro de 2023, não é um episódio isolado.

Investigações feitas às pressas pela Polícia Federal (PF), sem apontar evidências da conduta individual dos indiciados – e mesmo assim validadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) –, resultaram na prisão de centenas de pessoas, incluindo idosos e mães de crianças pequenas. Muitos seguem atrás das grades sob o pretexto de prisão preventiva que, na prática, já se estende por anos.

Este é o caso da maranhense Eliene Amorim de Jesus, de 30 anos, que está detida na Unidade Prisional de Ressocialização Feminina (UPFEM) desde 18 de março de 2023. Eliene não tinha antecedentes criminais, trabalhava como manicure, desempenhava um trabalho missionário em uma igreja evangélica e estudava Psicologia.

Apoiadora de Jair Bolsonaro, costumava frequentar atos de apoio ao ex-presidente em São Luís-MA portando um caderno e uma caneta – seu objetivo era escrever um livro, sob a ótica da Psicologia, explicando as razões que motivavam a reunião de tantos desconhecidos por uma afinidade política.

Após sua prisão, a PF apreendeu seu celular e comprovou sua versão ao identificar rascunhos sobre o livro no bloco de notas do aparelho. Os policiais não apontaram nenhuma evidência concreta de vandalismo cometido pela manicure, mas mesmo assim decidiram indiciá-la. Os argumentos frágeis foram acatados pela PGR, que apresentou denúncia ao STF.

Eliene foi acusada pelos crimes de associação criminosa armada; golpe de estado; tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito; deterioração de patrimônio tombado; dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima.

Sem condições financeiras de bancar advogados, a maranhense foi defendida pela Defensoria Pública da União até o final de março deste ano, quando constituiu uma advogada particular que a atende de forma pro bono, isto é, sem custo.

Ao todo, o ministro do STF Alexandre de Moraes já negou a ela quatro pedidos de soltura. Além da falta de provas de cometimento dos crimes pelos quais Eliene foi denunciada, outro argumento central da defesa é a falta de competência do STF para julgá-la. Ela, assim como centenas de presos por envolvimento com os atos de 8 de janeiro, deveriam ser julgados pela justiça comum, já que não têm foro privilegiado.

Moraes agendou para esta quinta-feira (3) a audiência de instrução para ouvir testemunhas. Mesmo diante da fragilidade da denúncia, se for condenada por todos os crimes, a manicure pegará ao menos 15 anos de prisão.

O que as investigações sobre Eliene identificaram

As versões da Polícia Federal e de Eliene sobre sua participação nos atos são praticamente iguais. O que a missionária alegou (e que foi comprovado pelos investigadores) é que ela se deslocou de São Luís a Brasília e permaneceu na capital federal nos dias 7 e 8 de janeiro de 2023. Lá, ela tinha dois objetivos: o primeiro era fazer anotações para seu livro, e o segundo era gravar vídeos para as redes sociais do grupo BP Patriotas, mostrando as manifestações em Brasília e agradecendo doações recebidas.

Dois homens que também integravam o grupo a acompanharam: Alan e Lucas. Um dos coordenadores do BP Patriotas, Antônio, era quem passava orientações aos três, não apenas sobre como deveriam fazer as gravações, mas também sobre estadia e segurança. Nas mensagens trocadas entre eles, coletadas pela PF, Antônio faz orientações claras para que todos ficassem longe de possíveis confusões ou episódios de violência, o que mostra que Eliene, Alan e Lucas não se deslocaram a Brasília com o objetivo de vandalizar.

Nas mensagens, o coordenador orienta aos três que não fiquem “no meio de aglomerados perigosos”, entre a “galera mais radical”. “É sempre bom encontrar locais onde tenha mais mulheres, famílias e gente idosa por perto. Em caso de confrontos, esses locais com esses públicos geralmente são poupados. Não entre em nenhuma pilha de confrontos. Manifestações como essa, todo mundo fica à flor da pele e as palavras de ordem costumam empurrar manifestantes para quebra-quebra e bagunça. Se sentir isso em determinados pontos da manifestação, procura outro”, diz Antônio.

Os investigadores concluem apenas que Eliene recebeu doações de apoiadores do grupo BP Patriotas para custear sua viagem a Brasília e que ela esteve nas dependências do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto quando os prédios estavam sendo invadidos.

Dois stories publicados pela maranhense em sua conta no Instagram foram a evidência levada em conta para denunciá-la por cinco crimes violentos. O primeiro fazia alusão ao seu livro – ela publicou uma foto de si mesma dentro do Palácio do Planalto com a legenda “É fácil ser escritora, eles disseram. Diretamente do Palácio do Planalto DF”.

No outro, também dentro do Palácio do Planalto, ela publicou uma foto do local com a frase “Bora Brasil”. Apenas com esses registros a PF cita que “é razoável concluir que Eliene participou ativa e significativamente da invasão de prédios públicos, inclusive registrando em sua rede social os atos e fazendo afirmações que denotavam que consentia e simpatizava com os eventos que ocorriam no local”, diz o auto de indiciamento.

“Não há nos autos elementos que indiquem que Eliene instigou previamente e/ou financiou os atos ocorridos no dia 8/1/2023”, prossegue a peça.

Eliene Amorim de JesusStories que Eliene publicou em seu perfil no Instagram no dia 8 de janeiro, usado pela PGR como prova para denúncia (Foto: Reprodução)

PGR não apresentou novas provas, mas pediu pena rigorosa

O indiciamento só ocorreu em fevereiro de 2024, ou seja, quase um ano após sua prisão preventiva. Já a denúncia feita pela PGR foi apresentada quando Eliene já estava presa a um ano e dois meses.

Mesmo sem nenhuma prova que comprovasse as alegações, a PGR subscreve que no dia 8 de janeiro a maranhense “destruiu e concorreu para a destruição, inutilização e deterioração de patrimônio da União, ao avançar contra as sedes do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, fazendo-o com violência à pessoa e grave ameaça, emprego de substância inflamável e gerando prejuízo considerável para a União”.

Novamente a única evidência apresentada são os stories em seu perfil no Instagram, sem prova de qualquer ato individual criminoso por parte da manicure.

Áudios não descrevem Eliene atacando, apenas correndo de gás e bombas

Na investigação, a Polícia Federal identificou um áudio de Alan, que acompanhava Eliene, descrevendo a outro rapaz o comportamento da missionária no momento em que manifestantes confrontavam policiais. O rapaz menciona que ela estava apenas correndo do gás lacrimogênio e das bombas de efeito moral, e não atacando policiais.

“A Eliene correu tanto, que tanto gás e tanta bomba, os caras parecem que estavam mirando só nela porque ela tava com aquele livro [caderno de anotações]. Não sei se eles pensaram que ela estava era anotando o nome deles”, diz Alan no áudio transcrito.

Em outro trecho de conversa pelo WhatsApp que ocorreu dias depois, Eliene diz a Alan que acreditava que haviam pessoas infiltradas na manifestação, e que elas teriam ido portando explosivos para fomentar atos violentos. A PF transcreveu vários trechos de áudios no auto de indiciamento, mas as mensagens em que ela indica que haveriam infiltrados com explosivos não foram transcritas.

Apelidada de “Bolsonara”, missionária foi hostilizada e sofreu agressões no presídio

Eliene segue presa junto com detentas condenadas por crimes como assassinato e narcotráfico. Já precisou mudar de cela várias vezes devido a uma hostilização severa que sofreu, sobretudo nos primeiros meses de prisão. Segundo Andrécia Oliveira, advogada da maranhense, já houve diversos episódios de agressão contra Eliene. Em um deles, relata, ela foi atacada por outra detenta com uma gilete. A agressividade, segundo a defensora, tem motivação política.

“Aqui no Maranhão as coisas são muito mais complicadas. De 100 pessoas, apenas uma vai votar no Bolsonaro. E quem o apoia ainda assim tem medo de falar. E as pessoas de esquerda são muito fortes”, explica.

Os pais de Eliene, idosos e em situação financeira delicada, têm dificuldades para visitá-la. O pai tem mobilidade reduzida, e a mãe consegue se deslocar apenas quando consegue doações. “É uma família muito pobre, que vive de lavoura. Tudo que ela recebeu na penitenciária veio de doação, desde condicionador até remédio para cólica”, relata Andrécia.

Primeira turma do STF ignorou falta de provas contra Eliene

Em agosto de 2024, a Primeira Turma do STF aceitou por unanimidade a denúncia contra Eliene. Os ministros que compõem o colegiado são Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Gilmar Mendes, Luis Fux e Cármem Lúcia.

Em um dos vários pedidos de absolvição, a defesa diz que a denúncia contra a manicure “não demonstra, nem de longe, qualquer vínculo da ré com as pessoas que eventualmente estivessem a perpetrar os delitos a ela imputados, razão pela qual o fato narrado evidentemente não constitui crime”.

Sem provas, Moraes, que vem reiteradamente negando os pedidos de soltura, alega que “foi demonstrada a ativa participação de Eliene Amorim de Jesus nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023”. Na visão do ministro, a liberdade da missionária “representa grave comprometimento da ordem pública”.

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