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Há cerca de dez dias, uma casa foi "assassinada" numa das áreas nobres de Curitiba – precisamente na esquina das ruas David Carneiro com Marcos Moro, no bairro São Francisco, a poucos metros de um endereço bem sugestivo: o Cemitério Municipal São Francisco de Paula. A construção era de 1953, de autoria do arquiteto Elgson Ribeiro Gomes, por encomenda do também engenheiro Joaquim Franco – conhecido como o construtor do Hospital São Lucas. Graças a suas virtudes arquitetônicas, em 2003 a moradia entrou para a lista de Unidades de Interesse de Preservação (Uips) da prefeitura de Curitiba, título que não impediu a derrubada do imóvel e o início daquela que deve ser uma batalha sem precedentes no setor de patrimônio histórico da capital.

Até agora, o saldo é a perda de um dos melhores exemplares da arquitetura modernista no Paraná e a suspeita de que a política de preservação de bens históricos praticada pelo poder municipal precisa ser fechada para balanço – antes que mais alguma casa caia. A questão é controversa.

"Temos muito mais bens históricos do que as cidades que usam tombamento tradicional. Nosso processo é eficiente", desafia Ricardo Bindo, diretor de Planejamento do Ippuc. Bindo tem razão. Em Curitiba, são 660 UIPs, sendo 29 delas casas modernistas, uma quirera na cidade das 160 mil moradias e prédios. A política praticada na capital é, digamos, moderna, por manter o poder público em contato com os proprietários o tempo todo, por prever recompensas a quem fizer a lição de casa e por ceder em alguns quesitos, a depender do uso da propriedade. Mas peca por deixar uma grande lacuna legal: é um decreto, não uma lei de tombamento. Logo, um perigo.

"Falta-lhe força jurídica. É um decreto que desvia das implicações políticas de uma lei de tombamento", reforça a arquiteta Rosina Parchen, diretora do Patrimônio do governo do estado. A crônica da casa assassinada é uma prova disso.

Tijolo por tijolo

Há duas semanas, a Secretaria Municipal de Urbanismo recebeu uma denúncia anônima informando que homens estavam trabalhando na demolição de uma residência da Rua David Carneiro. De acordo com depoimento do diretor de Fiscalização do município, José Luiz de Mello Filippetto, o atual proprietário – cuja identidade a prefeitura não revela nem sob tortura – desconsiderou a informação de que estava destruindo uma unidade de interesse histórico e não fez o que se esperava: que mandasse parar as máquinas. Por tabela, o dono não tinha alvará de demolição, o que lhe rendeu uma uma multa de R$ 34 mil, com possibilidade de ser dobrada para R$ 68 se em dez dias o primeiro valor não for pago ou se apresente recurso.

Ainda conforme a própria prefeitura, o alerta de que se tratava de uma unidade de interesse de preservação consta das guias amarelas, do que se deduz que o dono comprou a casa – há pouco mais de um ano – sem estar enganado. Quanto à punição por ter desconsiderado a condição de UIP, resta o silêncio. Nin-guém sabe o bicho que vai dar. Sem certezas à vista – sobra burocracia na terra de Cabral.

A Secretaria Municipal de Urbanismo vai encaminhar o caso à Comissão de Patrimônio Histórico da capital, à Procuradoria-Geral do Município (PGM) e ao Ministério Público Estadual. Por enquanto, a PGM está de mãos atadas porque os trâmites do Urbanismo ainda não foram cumpridos. E representantes da Comissão de Patrimônio não querem falar no assunto – no exato momento em que deveriam fazê-lo –, confirmando o que corre a boca-pequena: o setor de Patrimônio do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, o Ippuc, um dia visível, virou um apêndice do instituto; e a comissão – um mero órgão de apoio – não tem mesmo muito a dizer.

A batata quen-te ficou para o próprio Ippuc, onde é possível levantar algumas possíveis punições aos demolidores da casa Joaquim Franco. Uma delas é não permitir que seja construído no terreno, que tem cerca de 1,5 mil metros quadrados, nenhum prédio que exceda os 800 metros quadrados projetados por Elgson. A hipótese não encontra simpatia nem no maior lesado de toda essa história – o arquiteto Elgson Ribeiro Gomes, 84 anos. "O sujeito que comprou a casa da família do Joaquim Franco não merece ser punido. Quem falhou foi o poder público. Mande o dono me procurar que faço para ele outro prédio para virar história", decreta o veterano responsável pela construção de cerca de 50 prédios e 20 casas modernistas, a maioria na capital. Ele é o Niemeyer de Curitiba – só faltou contar para os curitibanos.

Conversa atravessada

Se a ameaça de revide do Ippuc se cumprir, "o caso da casa" vai virar briga de cachorro grande, com potencial para cerca de dez anos de quebra-pau nos tribunais. O imóvel fica numa ZR3 e não poderia abrigar nada mais alto do que um edifício de quatro andares. Mas a seu lado, no número 328, há um condomínio de dez andares. É um precedente. Não se sabe quanto foi pago pela área, mas de acordo com um especialista do setor imobiliário consultado pela Gazeta do Povo o valor de ZR3 não seria menor do que R$ 500 mil e como ZR4 deve ter ultrapassado R$ 1 milhão.

O que se especula é se para o proprietário, qualquer que seja o valor desembolsado na negociação, a multa por não ter alvará de demolição não equivaleria a uns caraminguás, tamanho o potencial do imóvel – um raciocínio que coloca em perigo as demais 28 casas modernistas cadastradas pelo Ippuc. Outra possibilidade é que o próprio mau exemplo dado pela prefeitura no caso da Pracinha do Batel esteja servindo de inspiração ao vandalismo de terno e gravata. Há pouco mais de um mês, o poder municipal desconsiderou a indicação do setor de Patrimônio do governo de que havia estudos de tombamento do logradouro e passou uma rua por cima da praça.

Para Rosina Parchen, só resta uma saída: admitir que é hora de aliar a política das UIPs com uma lei de tombamento, recurso que municípios vizinhos como Pinhais e Araucária já dispõem.

De acordo com Ricardo Bindo, o Plano de Controle Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, em trâmite na prefeitura, cogita mais uma vez a idéia do tombamento. "É possível", acena. A incrível fachada de tijolos vermelhos vazados da casa Joaquim Franco, que pena, não vai estar lá para ver.

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