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Alexandre de Moraes se baseou em dados de prisões para diferenciar usuário de traficantes
Alexandre de Moraes se baseou em dados de prisões para diferenciar usuário de traficantes| Foto: Carlos Moura/SCO/STF

O ministro Alexandre de Moraes votou a favor da descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal. Em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), ele propôs que se uma pessoa for flagrada pela polícia com 25 a 60 gramas da droga – o limite exato ainda será definido ao longo do julgamento – ou 6 plantas fêmeas da cannabis sativa, ela seja considerada usuária e fique livre de punição criminal, desde que não haja outros indícios de que estaria vendendo.

Pela proposta do ministro, mesmo que portar uma quantidade abaixo do limite, própria de um usuário, a pessoa pode ser enquadrada como traficante se a polícia registrar que a maconha estava acondicionada para venda, se instrumentos típicos do tráfico estavam presentes (balança, anotações de encomendas, por exemplo) ou se a circunstância indicar o comércio. De qualquer modo, a pessoa ainda poderá, na audiência de custódia, tentar provar ao juiz que a maconha seria apenas para uso próprio.

Com Moraes, já são quatro ministros favoráveis à descriminalização. Assim, bastam mais dois votos, entre os 11 ministros, para uma maioria nesse sentido. Além de Moraes, já votaram pela descriminalização Gilmar Mendes (relator), Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Faltam votar André Mendonça, Kassio Nunes Marques, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Rosa Weber e Cristiano Zanin, que toma posse nesta quinta (3). O julgamento foi adiado e será retomado nas próximas semanas.

A discussão no STF sobre a descriminalização do porte para consumo pessoal começou em 2015 e estava parada desde então, sendo retomada nesta quarta (2), com o voto de Moraes. A Corte julga a ação de um homem flagrado com 3 gramas de maconha dentro de um presídio. A Defensoria Pública alega que a criminalização interfere excessivamente na vida privada, estigmatiza dependentes e não contribui para a redução dos danos causados à saúde pública.

Desde 2006, não há pena de prisão para o porte, e a punição se limita a advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Apesar de a lei não impor pena de prisão para usuários, os defensores da descriminalização alegam que muitos deles acabam sendo enquadrados e presos como traficantes pela polícia. Nas penitenciárias, são facilmente cooptados por facções criminosas e passam a cometer delitos mais graves e violentos quando saem. Esse argumento foi enfatizado por Moraes, em seu voto, com dados.

Citando números do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o ministro destacou que de 2007 a 2013, após a mudança na Lei de Drogas que retirou a pena de prisão para usuários, os presos por tráfico passaram de 15,5% para 25,5% da população carcerária no Brasil. Nesse mesmo período, o total de presos subiu 80%.

“De 100 pessoas que estavam presas em 2007, 15,5 eram por tráfico. Em 2013, essas 100 pessoas passaram para 180, e 46 por tráfico. Gerou três vezes mais traficantes presos. Por isso tivemos aumento exponencial da população prisional no Brasil. Isso gerou o fortalecimento das facções criminosas. Essa lei não pretendia isso, mas gerou aumento do poder das facções. Porque aquele que antes era tipificado como usuário, o sistema de persecução aplicava uma sanção, mas quando despenalizou, o sistema de persecução penal não concordou, e acabou transformando muitos usuários em pequenos traficantes, que têm pena alta, e eles foram para o sistema penitenciário. O jovem, primário, sem oferecer periculosidade à sociedade, foi literalmente capturado pelas organizações criminosas”, afirmou.

Outro reflexo disso, segundo ele, foi o aumento da prisão de mulheres por tráfico. “Para que esses homens jovens fossem protegidos pelas facções dentro dos presídios, as mulheres deles, irmãs, mães, filhas, tiveram que passar a trabalhar para as organizações criminosas fora dos presídios, e trazer droga para dentro dos presídios”, exemplificou. “Isso aumentou em 75% o número de mulheres presas após a lei, e quase 40% presas por tráfico ilícito de entorpecentes”.

Com dados de São Paulo, coletados pela Associação Brasileira de Jurimetria, ele demonstrou como varia de local para local a definição de quem é considerado usuário e traficante conforme a quantidade de droga encontrada com a pessoa. “Na capital se considera tráfico o porte de 33 gramas de cocaína, 17 de gramas de crack e 51 gramas de maconha. No interior, 20 gramas de cocaína, 9 gramas de crack e 32 de maconha”, afirmou.

Quando o recorte é feito por idade, instrução e cor da pele, as discrepâncias aumentam. Segundo ele, na mediana, se um analfabeto é flagrado com mais de 32 gramas de maconha, é preso por tráfico; se tiver ensino médio, só é preso por tráfico se portar mais de 40 gramas; e se tiver ensino superior, se for pego com mais de 49 gramas de maconha. No estado, os dados mostram ainda que se a pessoa tiver 18 anos, 23,9 gramas de maconha bastam para que seja enquadrada como traficante; se tiver 30 anos, 36 gramas; acima disso, só com 56 gramas.

“O que verificamos é injustiça muito grande. Quanto mais velho e mais instrução, mais difícil ser caracterizado como traficante. Isso foi sendo construído naturalmente, é o preconceito estrutural em relação ao jovem analfabeto”, afirmou, acrescentando que o estudo também verificou tolerância menor da polícia em relação a pretos e pardos.

Por isso, ele defendeu a fixação de uma quantidade única para diferenciar usuário de traficante, desde que não haja outro indício de que a pessoa não esteja vendendo a droga.

“O critério da quantidade não pode ser o único. Caso a caso, outros critérios complementares [devem ser analisados] para a tipificação. Por exemplo: a forma como está acondicionado o entorpecente – claramente para a venda. A diversidade de entorpecentes: alguém que é preso em flagrante com pouca quantidade de inúmeros entorpecentes na porta de uma boate – claramente vendendo. A apreensão de outros instrumentos: balança, caderno de anotação, notas no celular – hoje proliferam aplicativos de compra e venda para delivery de entorpecentes. Os locais e circunstâncias da apreensão: a polícia prendeu aquela pessoa entregando para outra, se está com pouca quantidade, porque a quantidade [maior] está guardada em outro lugar”, exemplificou.

Para Moraes, a quantidade fixada não pode ser muito pequena, de modo que o usuário tenha sempre de provar que não é traficante quando flagrado com a droga; nem tão alta, de modo que valha a pena para o traficante sempre portar dentro do limite, para que assim nunca seja preso, o que elevaria a impunidade para o narcotráfico.

O limite exato deve ser definido ao longo do julgamento, com a discussão entre os ministros. Em 2015, Barroso já havia proposto o limite de 25 gramas ou 6 plantas fêmeas para que a pessoa flagrada com maconha seja considerada usuária, na falta de indícios de tráfico.

Relator do caso, Gilmar Mendes havia votado pela descriminalização do porte para consumo de qualquer droga. A maioria, no entanto, tende a restringir a decisão à maconha. Foi também a opção de Fachin, para quem o STF deve agir no caso com autocontenção.

MP-SP é contra a descriminalização do porte de drogas

Em maio, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP), que participa da discussão, apresentou manifestação em que buscou rebater argumentos comumente usados de quem defende a descriminalização.

Para isso, o órgão citou recente alteração na Lei Antidrogas, sancionada e aprovada no Congresso com apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro, e também o problema crescente das cracolândias, que têm se espalhado pelo país, em capitais e cidades médias.

Em 2019, a política de drogas mudou para reforçar o papel das comunidades terapêuticas e permitiu a internação involuntária de dependentes. A pena para o usuário – que não é de prisão e se limita a advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programa ou curso – permaneceu, mas com a possibilidade de atenuante se a quantidade apreendida for baixa e “demonstrar menor potencial lesivo da conduta”.

A lei parte do princípio de que, embora o consumo de drogas seja uma decisão individual, não causa danos apenas ao usuário, mas também à saúde pública e à segurança da coletividade. O problema não é só de ordem pessoal, mas social, como demonstra a situação da cracolândia, onde abundam mortes por violência e diversas doenças.

“Do ponto de vista normativo, o Estado reconhece seus limites no que tange às decisões de cada indivíduo em relação ao consumo de drogas, sem ignorar, porém, que o uso indevido das substâncias psicoativas interfere no convívio social, ou seja, na própria sociedade [...] A proliferação das drogas é, visivelmente, uma das causas principais do aumento da criminalidade em todo o país, incluindo as antes pacatas cidades interioranas”, diz o MP-SP.

Segundo o órgão, a penalização do porte para consumo não tem por finalidade proteger o indivíduo de si mesmo, numa concepção paternalista do Estado, mas impedir o aumento da violência, a deterioração do convívio social e familiar, e males na saúde coletiva.

O MP cita, como exemplo, um estudo de 2012 que constatou que a taxa de mortalidade entre usuários de crack em São Paulo era sete vezes maior do que na população em geral. Mais da metade foi vítima de homicídio, um quarto morreu de Aids, e outra parte considerável por overdose e hepatite B.

Outro argumento diz respeito ao tráfico. O MP sustenta que uma decorrência lógica da descriminalização do porte seria também a descriminalização do comércio, algo expressamente proibido pela Constituição. A ideia aqui é que não faz sentido despenalizar o consumo e punir o fornecimento, até porque este se alimenta do primeiro.

“A aquisição de substâncias psicoativas ilícitas pelo usuário é apenas o ato final de uma longa cadeia de delitos, que todos temos acompanhado nas últimas décadas, que geraram poderosas e violentas organizações criminosas, trazendo às regiões produtoras gravíssimos problemas de ordem pública”, diz o órgão, acrescentando que as regiões consumidoras também são dominadas por organizações criminosas.

O MP-SP questiona o que aconteceria se, do dia para a noite, ninguém mais estivesse sujeito à punição na “ponta final da cadeia comercial criminosa das drogas”. “Onde poderá o usuário fumar sua porção de crack? Na calçada da escola? Será admitida a injeção de cocaína na corrente sanguínea numa praça, em plena luz do dia? Aliás, quem venderá a droga? Tais “liberdades” estão realmente de acordo com a Constituição Federal brasileira? Cremos que não”.

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