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Amanda Rossi foi encontrada morta dentro do campus da Unopar | Roberto Custódio/JL
Amanda Rossi foi encontrada morta dentro do campus da Unopar| Foto: Roberto Custódio/JL

Aloísio Redemesky, 67 anos, morto na semana passada, era um curitibano típico. Tinha sobrenome estrangeiro, passou décadas de sua vida num único bairro – o Boqueirão –, e seu enterro precisou de um imenso cortejo, com cerca de 30 quilômetros, até o Cemitério Bonfim, em São José dos Pinhais, na região metropolitana da capital. Não se sabe ao certo, mas tudo indica que ser sepultado muito longe de casa virou o destino de uma boa parte dos moradores da capital. A cidade tem 22 cemitérios, 148 mil túmulos, distribuídos numa área semelhante à do Parque Barigüi. O último empreendimento do ramo é de uma década atrás e encontrar jazigo perto de onde se mora, pela lei da probabilidade, equivale a um quase milagre.

Detalhe: dos 22 cemitérios, apenas sete estão na Zona Sul, sendo que um deles é o da Água Verde, onde a fila de espera por um túmulo ultrapassa 500 pedidos. No Boqueirão a lista é de 362 candidatos a uma cova. Outros três cemitérios sulistas são religiosos, ou seja, voltados para israelitas, luteranos e muçulmanos. Para quem não se encaixa nesse quesito, resta um cemitério meio particular, meio público, no Umbará, e um paroquial, no mesmo bairro, cujas dimensões reduzidas abrigam dizimistas e fiéis, e olha lá. "Boqueirão, Água Verde, Santa Cândida e Municipal. Esses cemitérios seguem os quatro pontos cardeais. Nenhuma área deixaria de ser atendida. Mas a cidade não cresceu por igual", justifica Walmor Trentini, chefe do setor de Serviços Especiais da prefeitura.

A família de Aloísio sabe do que se trata. Bem gostaria de tê-lo perto de casa, mas o finado já tinha resolvido o enrosco – decidiu comprar um jazigo no Cemitério Bonfim, para tristeza de gente como a irmã Ludovica Landiosi, 69 anos. No velório, ela pensava nas distâncias que terá de vencer para visitar o mano.

"Tinha gosto que fosse no Boqueirão." Não só ela. O metalúrgico aposentado Waldomiro Diana, 56 anos, morador da Vila Pompéia, região do Tatuquara, há cinco anos decidiu comprar um jazigo para a mãe, hoje com 86 anos. Pensou no cortejo, nas visitas, nos preços e chegou à conclusão de que a melhor escolha era investir no Cemitério de Fazenda Rio Grande, na região metropolitana de Curitiba, a 12 quilômetros de casa. "Na Água Verde não tem mais lugar", desabafa, sobre o local de sua predileção.

Semana passada, a fatalidade. Edicarlos Teodoro Diana, 20 anos, sobrinho de Waldomiro, morreu em decorrência de uma leucemia. Jovem, inaugurou o túmulo dos Diana, hoje no valor de R$ 4 mil.

A distância pode não ser um deus-nos-acuda, mas inclui a BR e seus 40 mil carros, acrescida daquelas situações surreais que costumam marcar a rotina dos sepultamentos.

Na hora do enterro, com frio siberiano, ameaça de chuva e 80 amigos e parentes inconsoláveis com a tragédia de Edi, descobriu-se que a gaveta de alvenaria tinha 2,15 metros e o caixão 2,22 metros. O contratempo – que incluiu questionamentos absurdos sobre o tamanho do falecido – levou uma hora de desespero, atrás do pedreiro que fez o serviço, da administração e de alguém com cabeça fria para resolver o problema. "Quero um outro terreno", protesta o indignado Waldomiro.

Fora do script

A voz de Waldomiro não é solitária. Andar pelos cemitérios é fatalmente se deparar com gente tendo de lidar com lágrimas e aporrinhações absolutamente fora do script. O sepultamento de Sibele Lourenço da Silva, 26 anos, há poucos dias, atrasou por conta de entraves burocráticos com a funerária, obrigando parentes a se virar em quatro bem na hora do "último adeus". "Antigamente, tinha quatro empresas disputando quem ia enterrar. Agora é essa falta de sensibilidade com a gente", lamenta Fernando Zequinão, tio de Sibele, morta em decorrência de uma cirurgia bariátrica. "Quem podia esperar?", justifica-se, ao lado do carro funerário empacado na porta da capela do Cemitério do Boqueirão, à espera de papéis e assinaturas.

O Setor de Serviços Especiais da prefeitura municipal de Curitiba não passa impune pelos atropelos da morte. Pela repartição de dois andares, numa das pontas do Cemitério São Francisco de Paula, o Municipal, circulam as histórias de quem foi pego de calças curtas e não tem onde sepultar os seus. Estima-se que, mensalmente, uma centena de carentes recorram ao poder público em busca de uma vaga. Elas surgem em alas especiais no Boqueirão, no Umbará e no Santa Cândida. Depois de três anos, os restos mortais vão para os ossários da prefeitura, até que a família possa comprar um jazigo.

O chefe dos Serviços Especiais, Walmor Trentini, teve de adotar uma estratégia para conter a procura e identificar os realmente necessitados: para se habilitar, os candidatos precisam receber algum benefício social do governo. Tem funcionado. Foi assim que Sônia Bosquera Fagundes, 42 anos, moradora da Vila Verde e desempregada, conseguiu sepultar o companheiro Gumercindo Fagundes no Boqueirão. "Meu marido morreu de cirrose. Mas tinha apenas 43 anos, eu não esperava. Só quando aconteceu me dei conta da falta de cemitérios em Curitiba. Nem sei quantos ônibus vou ter de pegar para visitá-lo. Terá de ser em Dia de Finados", diz.

Walmor observa todo o movimento fúnebre com caneta na mão. Ele é o legítimo "homem quem calculava". Tanto que já não se pode falar de morte em Curitiba sem passar pelos arquivos do chefe. "Não tem jeito. A maioria é pega desprevenida", ilustra. Para ele, contudo, o deslocamento a que os familiares se vêem obrigados a enfrentar é relativo. Dados de 1.º de janeiro a 15 de outubro deste ano mostram que 64,3% da clientela morreu nos hospitais e 17,27% em casa; outros 7,15% em vias públicas e 4,90% em unidades de saúde. "Entre 30 e 40 pessoas podem ser enterradas no mesmo jazigo e os cemitérios municipais não cobram taxa de manutenção", diz, sobre o que seria um dos serviços mais baratos da paróquia. A prefeitura dispõe de 35 mil túmulos e contabiliza 300 mil sepultados. Em toda a cidade, são cerca de 7 mil enterros por ano. Mas dos cerca de 148 mil jazigos disponíveis, mais de 100 mil estão bem longe da Zona Sul. Dá para imaginar o que acontece.

Num dos 18 cemitérios particulares da cidade, os preços podem ultrapassar R$ 6 mil, enquanto a concessão na prefeitura é de R$ 1.930. Duro é a fila. No Municipal, tem quem espere uma vaga desde 1988. Para ser brindado, alguma família tem de literalmente abandonar seus mortos ao mato, à infiltração e não atender aos chamados da administração. Resta para os familiares de até 1,2 mil mortos por mês – somando os de Curitiba e os da região metropolitana que morrem em hospitais da capital – procurar socorro nos municípios vizinhos, como os Diana e os Redemesky.

Na Comec (Coordenação da Região Metropolitana) ainda não há nenhum estudo sobre a caravana dos mortos de Curitiba para os arrabaldes, mas o assunto tende a entrar em pauta. Não se levantou ainda o número de óbitos nem de vagas disponíveis nos 26 municípios que formam a região. À boca-pequena, sabe-se que as distâncias são longas, mas que há vagas e preços de ocasião.

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