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De dia ou à noite, os motoboys não param. Além dos acidentes, a surdez, a exposição à poluição e as lesões por movimentos repetitivos também preocupam | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
De dia ou à noite, os motoboys não param. Além dos acidentes, a surdez, a exposição à poluição e as lesões por movimentos repetitivos também preocupam| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

Ausência de dados

A chave do problema

Estudos dos setores de trânsito mostram que desde o início da década a frota de motocicletas aumentou 175% apenas em Curitiba. Mas o risco não é numérico, apesar da impressão que causa nos centros urbanos: como cresce a demanda por serviços "a jato", como entregas, jovens de baixa instrução e vínculo frágil no mercado de trabalho passaram cada vez mais a se voluntariar para a função. A violência dos acidentes envolvendo motoboys – apressados para distribuir pizzas, remédios e afins – estaria gerando uma leva de mutilados.

O problema é comprovar esse estrago estatisticamente. Assim como carrinheiros, ambulantes e outras categorias informais, não se sabe quantos atuam nesse ramo nem quantos teriam sido aposentados por invalidez: como a lei que reconhece a atividade é recente, não consta dos arquivos da Previdência. Os poucos motofretistas registrados estão anônimos na categoria comerciários que sofreram acidentes no trabalho.

As práticas de levantamento de dados dos órgãos de trânsito e do sistema de saúde também não ajudam. Sabe-se que em 2008, por exemplo, pouco mais de 300 motoqueiros morreram no local dentre pouco mais de 27 mil acidentes no estado. Os hospitais sabem quantos foram internados, mas nem sempre a função do paciente. E não há registros sobre invalidez. A morte após o internamento, idem, pode receber inúmeras denominações, apagando o histórico dos motoqueiros e motoboys vitimados.

O cruzamento de dados nacionais e regionais, contudo, permite chegar perto da realidade e deduzir que a cada mês uma centena de motoqueiros, sejam motoboys ou não, ganham ingresso para uma longa permanência no sistema de saúde, apenas no Paraná. E que não saem impunemente dessa passagem pelo hospital.

Leis avançam, mas registro demora

Segundo o presidente fundados do Sindicato dos Tra­­ba­­lhadores Condutores de Veí­­culos Motonetas, Motocicletas e Similares de Curitiba e Região Metropolitana (Sintramotos), Tito Mori, o principal trabalho da instituição é denunciar a falta de registros no Ministério do Trabalho, para garantir a qualidade de vida e de serviço dos motoboys. "Deve-se criar uma cultura de que o motoboy é de responsabilidade da em­­presa. Eles podem até se considerar autônomos, mas trabalham para alguém, a empresa deve se responsabilizar. Um grande problema que vemos é a terceirização sem organização", diz.

A Lei 7.443, sancionada pelo presidente Lula em julho do ano passado, regulamentou as profissões de mototaxista e motofrete. Agora, os profissionais desses setores devem ser maiores de 21 anos, serem habilitados há pelo menos dois anos, aprovados em um curso de capacitação, usar colete de segurança refletivo e instalar em suas motos os equipamentos de segurança necessários, como o protetor mata-cachorro, para evitar que as pernas sofram lesões.

Para Mori, apesar de essa ser uma vitória, muitos motoboys não estão registrados. "Mais ou menos 60% dos que atuam em Curitiba não têm registro. E no Paraná, acredito que quase 100% está nessa situação", afirma o presidente do sindicato.

Profissionalização

O Projeto Motofrete, que teve participação do Sintramotos em sua elaboração, foi aprovado em 2008 e virou lei de caráter municipal em 2009. A Lei 11.738 de Curitiba prevê o ca­­dastro do motoboy na Urbs, um curso de profissionalização e a confecção de um crachá que identifica os profissionais que estão cadastrados. Segundo Mori, isso ajuda a garantir o cumprimento da Convenção Coletiva do Trabalho. "Essa Convenção coloca os direitos e deveres de todas as partes interessadas na prestação de um serviço Cada um sabe o que deve fazer", coloca.

Desde que o projeto começou a vigorar, em 2009, a situação se tornou mais positiva. "O índice de acidentes com motoboys diminuiu em 22% em Curitiba. Acredito que por causa do curso profissionalizante que o Projeto oferece", aponta Mori.

  • Confira o crescimento da frota e a evolução do número de acidentes

Há uma máxima curitibana: a frota de automóveis se multiplica como bananas na Serra do Mar. Com 1 milhão de veículos, seus efeitos são mais sensíveis do que as baixas temperaturas que assaltam a população de abril a novembro, em média. Os números estão aí para comprovar o espetáculo do crescimento.

Dados do Detran-PR mostram que em 2009 foram licenciados na capital 81.473 carros, ou seja, pouco mais de 223 automóveis por dia receberam o primeiro emplacamento. Apenas nos meses de janeiro e fevereiro deste ano, em média 175 deixaram as concessionárias e ganharam seu passaporte para circular nas ruas. Não é o único problema.

O setor de motos – numericamente ainda mais tímido – se desenvolve como uma espécie de efeito colateral: desestabiliza o trânsito ao impor uma espécie de "terceira via" nas ruas e forma uma geração de mutilados por acidentes, como publicou a Gazeta do Povo na edição de ontem. Os números são os de uma guerra: apenas no Paraná, 1,5 mil condutores a cada ano passam a carregar alguma forma de sequela, do dedo torto à tetraplegia. (leia "Chave do Problema" nesta página).

Por partes

Segundo a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Auto­­mo­­tores – Seccional Paraná (Fena­­brave-PR), o segmento de motocicletas aumentou mais de 35% no estado: de 5.871 unidades vendidas no primeiro mês, passou para 7.965 no terceiro.

A frota de motos de Curitiba até fevereiro de 2010 era de 106.019 – aproximadamente uma para cada 17 habitantes. Ainda é uma estatística baixa, se comparada ao índice de carros, mas agravada porque o veículo de duas rodas se tornou uma necessidade para o transporte de documentos e mercadorias urgentes – o chamado motofrete.

Empresários disponibilizam esse meio de condução como alternativa para aqueles que não podem ou não querem se locomover em busca do que precisam. Encontram mão de obra farta, jovem, barata, quase nunca contratada nos conformes da lei. Seria perfeito não fosse o passivo que geram: riscos galopantes de invalidez, formando um exército de jovens de baixa instrução, dependentes da família, isolados numa sociedade que não resolveu o problema do mosquito da dengue, que dirá da mobilidade dos portadores de deficiência. Sem falar nos gastos: a estimativa é de que cada motociclista acidentado custe em média US$ 15 mil ao sistema público de saúde. É o caos.

Segundo o diretor do Departamento de Medicina Ocu-pacional da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), Dirceu Rodrigues Alves Júnior, o número de motos hoje no Brasil é muito alto, cerca de 12 milhões. Outros dados apontam 18 milhões. Mas não é o que mais preocupa.

Para Alves Júnior, no caso dos motoboys – ou motofretistas, como agora são chamados, por força da lei que regulariza a profissão, sancionada há um ano – o maior perigo está ligado à má preparação para enfrentar uma rotina estressante. "O motoboy vive uma pressão constante, tanto de seu patrão quanto do receptor da encomenda. Os dois querem que ele seja rápido. Isso é um agente irritante, que leva ao estresse, ao desgaste."

Esse estresse expõe mais facilmente o motociclista a cinco diferentes categorias de risco no trânsito: físico – de possíveis problemas auditivos por causa do barulho –, químico – pela exposição à poluição diária, que entram em contato com suas mucosas –, ergonômico – pela postura que fica na moto por longos períodos e pelos movimentos repetitivos, como frear –, biológico – exposição a micro-organismos – e de acidentes.

Ralados e fraturados

Os acidentes podem resultar em diversas lesões, desde as mais leves, como ralar partes do corpo no asfalto após uma queda, até graves fraturas expostas ou traumatismos cranianos. Segundo Alves Júnior, até mesmo as lesões mais leves podem acarretar problemas sérios. "Raspar uma parte do corpo no asfalto faz com que a carne entre em contato com as bactérias presentes naquele ambiente. O ferido pode ser socorrido, ter a ferida higienizada, mas pode desenvolver uma futura infecção, que, em última instância, tende até mesmo a levar a óbito."

Três hospitais que atendem traumas na cidade de Curitiba – Cajuru, Evangélico e do Traba­­lhador – atenderam juntos mais de 3 mil acidentes de moto nos quatro primeiros meses deste ano, entre atropelamentos, colisões com outros veículos e com motos e quedas. Estudos da Secretaria Municipal de Saúde apontam que, em alguns casos, cerca de 40% dos atendimentos nos prontos-socorros são acidentes com moto. O caso é tão grave que o Hospital do Trabalhador, referência em traumas e modelo na gestão de dados, passou a discriminar nas fichas de atendimento os motoqueiros dos motoboys. Em três meses foram 66 profissionais do ramo, com 11 internamentos e algum tipo de sequela na certa. Projetado em anos esse número é uma catástrofe urbana.

Alves Júnior diz que a maioria dos acidentados sofre lesões nos membros inferiores – que, na maioria das vezes, funcionam como parachoques do motociclista – e superiores. O motociclista deveria sempre usar macacão, botas de couro acolchoado e luvas. Mas o que se vê é que até o capacete, principal defesa, é inadequado.

"Muita gente acha que o capacete dura a vida inteira. Mas não é verdade. Em média, o material dura três anos se não sofrer danos. Depois disso, entra em decomposição e já não desempenha totalmente a função de distribuir impactos", alerta.

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