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"Eu tenho quatro filhos. Um de 8, outro de 10, um de 14 e outro de 18. Estou o tempo inteiro no trânsito. O resto s dá para deduzor", brinca a estudante de Direito Mylene Bootz, 39 anos, ao justificar sua presença no curso de reciclagem para condutores, no Detran, obrigatório para quem ultrapassou os 20 pontos em multas permitidos na carteira de habilitação. Mylene é uma mãe em alta velocidade. Curitibana do Bacacheri, faria de olhos vendados os caminhos que usa para deixar a criançada na escola, casa de amigos, cursos de línguas, etc. "Eu me garanto", resume. E é aí que mora o perigo. Ela reconhece. Dirigir virou rotina e usar cintos de segurança religiosamente ou cuidar dos radares virou um capricho desnecessário. Saldo final: 35 pontos e 30 dias sem dirigir.

Em 3 de agosto, quando Mylene finalmente colocar as mãos na carteira de motorista outra vez, alguma coisa deve mudar na casa dos Bootz. Vai ser criançada presa ao cinto no banco de trás e pé no freio – ainda que não deixe de dar uma chorada. "Pô, bem que a velocidade máxima podia ser 70, né!", reivindica – não sem antes deixar registrado que se alista entre os condutores que aprenderam com o erro. Ou, na marra, como se fala. É uma grande categoria. O exército dos que fazem um mea culpa, inclusive, salvaria a pátria. "Quando o pessoal chega aqui (no curso de reciclagem), os olhos faíscam. Está todo mundo fulo com o fiscal e a mira cai na gente. A maioria se diz vítima do que chamam ‘indústria da multa’. Mas no final, os alunos agradecem e dizem que foi legal. Tenho redações e mais redações confirmando essa mudança de postura", conta a psicóloga Seli Moreira do Amaral Carvalho, uma das professoras do Detran.

O administrador de empresas Valmir Moreschi, 41 anos, especialista em Trânsito e funcionário de carreira do Detran, também observa esses ritos de passagem. À frente do curso de reciclagem, com duração de 20 horas, vê passar 125 motoristas por semana, 600 por mês. No Paraná inteiro são dois mil alunos a cada 30 dias, há cinco anos. Dá até para arriscar tribos de motoristas – da mulher que assume os pontos do marido a legítimos representantes do filme "Velozes e Furiosos". "No início, o controlador de velocidade é uma armadilha. Mas muitos descobrem que discutir trânsito é uma delícia", explica Valmir.

Motivo para tanta civilidade? Seli nem pisca: "Há muita falta de informação. E quando a informação chega o pessoal se rende", sentencia. É curioso. No senso comum, todo condutor com um pouquinho mais de experiência age como PhD ao falar de trânsito. É mais ou menos como discutir futebol. Mas a questão vai muito além de impropérios contra o Estar ou problemas de congestionamento. Segundo o pessoal do Detran, é ao descobrir que o trânsito extrapola a sobrevivência diária nas ruas – incluindo a infelicidade de ter sido multado -, que a prosa muda o rumo.

Exemplo disso é uma aula de Seli que nove em dez alunos citam como a mais interessante – a que ensina a decifrar o que querem dizer as legendas de cargas e produtos perigosos, presas aos caminhões (ou que deveriam estar). A psicóloga, claro, se esmera na narrativa, criando suspense e gesticulando ao contar, entre outras, a história do policial que viu a bota derreter e ferir os pés ao pisar em ácido num acidente de estrada. Os olhos ficam grudados na mestra que fala em 3.300 tipos de produtos perigosos que circulam, às vezes, pela rua de casa. "Eu nem imaginava o perigo", diz Ariovaldo Fernandes de Barros, 54, morador da Ilha do Mel, multado em Curitiba depois de comprar uma caminhonete e perder a noção de velocidade num veículo maior.

Ariovaldo se considera um bom motorista e "lavra em cartório" que o que aprendeu no curso do Detran só veio a reforçar um código de conduta adotado de longa data. Tem 35 anos de carteira, "bem vividos". Definir em que tipo de motorista cada um se encaixa é primeiro passo. Difícil encontrar quem não saia de uma experiência como essa sem pelo menos se encaixar em alguma categoria de condutor, mesmo que seja a de distraído. Entre os sete entrevistados da Gazeta do Povo, todos se classificaram como apaixonado pelo volante. Com variações. Uns se dizem autoconfiantes demais. Outros, do tipo ansiosos e impacientes, principalmente "com gente lerda". Há quem reconheça, em meio aos defeitos, a virtude da cortesia com quem está tentando sair do supermercado e depende da caridade de estranhos. Depois de dizer a que tribo cada um pertence, começam as histórias. Um mar delas.

A do analista de sistemas Elias José Cury Busato, 24 anos, se deu numa madrugada, depois de um jogo do Atlético, quando o carro perdeu a aderência com o asfalto e "beijou" um poste. "Sou do tipo direção ofensiva", define-se o rapaz que se diz do tipo solidário, galante até, mas que decidiu repensar seus métodos depois de tirar uma fina do destino – no caso, o poste. "Eu podia ter me machucado feio". A sentença se parece à de Oslei de Oliveira, 32, empresário do ramo de couro. Ele trabalha no trânsito, nos três turnos, e volta e meia fica com a paciência por um fio. "Sou mais agressivo", resume. Mas não está sozinho. Tempos atrás, ao defender um motoqueiro que tinha levado uma fechada de um caminhoneiro saiu do bate-boca com dois tiros. "As balas pegaram no porta-malas do carro. Já pensou se tivessem me acertado?

Entre um raspão e outro – de bala de revólver ou no carro ao lado –, não dá outra. O trânsito é um ponto em comum até para quem não sabe dizer onde fica a embreagem e o acelerador. Faz parte da vida urbana. "Não demora muito para perceber que tanto o temperamento de cada um quanto o que acontece na sociedade se reflete nas ruas", acelera Valmir Moreschi. A aula está apenas começando.

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