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Mary lança livro que mostra como estamos atrelados à sexualidade | Divulgação
Mary lança livro que mostra como estamos atrelados à sexualidade| Foto: Divulgação

A historiadora fluminense Mary Del Priore – conhecida nacionalmente depois de publicar o livro História das crianças no Brasil, em 1999 – anda em seus tempos de bonança. Rompeu com a Universidade de São Paulo (USP), sua casa, e se tornou o que se pode chamar de livre pesquisadora. Escreve a seu modo, de olho no grande público, sem se render de todo às regras da academia.

Desde esse dia, a cada novo lançamento, faz cirandas na listas dos "mais vendidos" e se consagra como uma intelectual popular, perfil incomum nessas plagas. Foi assim com História do amor no Brasil. Assim é com Histórias íntimas – sexualidade e erotismo na História do Brasil, que acaba de chegar às livrarias e segue pelas tabelas.

É uma proeza. Os trabalhos de Mary – ainda que destituídos das citações e reverências a autores do establishment universitário – esbanjam rigor sem deixar de ser um convite à leitura. Outro mérito é sua coragem de usar como fonte jornais e revistas, avançando por uma seara em que os estudiosos pisam em ovos ou torcem o nariz. O resultado é que escreve livros de história, mas sem privar o leitor de confrontar o passado com experiências que viveu ainda ontem, no cotidiano.

Mary retira das entrelinhas, dos rodapés e das marginálias as pequenas histórias sobre o sexo no Brasil. É um trabalho de perícia, capaz de salvar das sombras um assunto ora tratado pelo viés do escrúpulo, ora deturpado pelo humor de chanchada, à brasileira. De tão sutis, alguns dados se assemelham a um olhar pela fechadura – não por menos imagem usada na capa do livro.

A surpresa é que a obra não se resume a um gabinete de curiosidade. Ainda que a seara da autora não seja a antropologia, a psicologia ou a sociologia, ela não se furta de lançar um olhar perturbador sobre o estado em que estamos, fazendo de Histórias íntimas um chacoalhão na pátria folgazã e marota.

"O sexo no Brasil está mergulhado na vulgaridade", diz. "Temos duas caras", completa, mostrando o rumo de sua conversa: discutir as razões de nossa suposta libertinagem. Acerta em cheio. A história é uma infinita fonte de curiosidades. Se o assunto for sexo, então. Mas se resumir a isso seria o fim: é na intimidade que a civilização começa. Mary discute essa verdade sem deixar de nos confidenciar poucas e boas. Confira trechos da entrevista dada à Gazeta do Povo.

Na década de 1980, a sexóloga Marta Suplicy surpreendeu o país, no TV Mulher, ao dizer que a revolução passa pela cama. Histórias íntimas é uma confirmação da máxima de que "sexo é poder"?

Acho que a estrutura de poder foi incorporada pelas mulheres. O problema do machismo no Brasil é a mulher machista. Enquanto as mulheres proibirem o marido de arrumar a cama e o filho de lavar a louça, enquanto gostarem de serem chamadas de tudo o que for comestível, de "mulher fruta", o que vamos ter é a desigualdade. Daí o título do livro: é na intimidade que se cozinha a mudança. E é na intimidade que temos a produção sistemática de machismo.

Do tipo Tati Quebra-Barraco...

Dou esse exemplo (risos). As músicas dos anos 70, com Joyce, Simone, Ivan Lins, Milton Nascimento, tinham como tônica a mulher livre, que queria viver, ser dona de seu corpo. A Tati é uma feminista de rolo de massa na mão. O que ela está dizendo: "Eu te levo para a cama, eu te pago..." é uma espécie de inversão de machismo, um machismo pós-moderno de mulheres que não se reconhecem no seu papel.

Como é que a gente faz para mudar de canal...

Acho que há dois instrumentos básicos para a transformação de nossa sociedade. O primeiro é a educação. Em segundo, há o papel da mídia, que se mostra vigilante, mas talvez não o suficiente. Temas como homoerotismo e aids foram tratados em novelas. A televisão e o cinema, ao tratarem desses assuntos de forma madura, podem ajudar muitas pessoas a sofrerem menos por causa de sua sexualidade. Não é possível que em 2011 a gente ainda veja jovens apanhando na Avenida Paulista, a mesma que dá passagem à Parada Gay. É um contrassenso.

Com Histórias íntimas você retoma a moda dos estudos de sexualidade no Brasil?

Nos anos 80, havia de fato uma moda desses estudos, pegando carona na historiografia francesa. Foi naquela época que se falou pela primeira vez de homoerotismo, por exemplo. Mas o foco era muito o sexo visto como uma contravenção. Meu trabalho tem outro sentido: mostra como passamos de uma sociedade em que o sexo era tabu, algo sujo e pecaminoso, para uma sociedade onde gozar se tornou um imperativo.

O que, a contar pela conclusão de seu livro, lhe parece um problema...

Histórias íntimas, no todo, é uma espécie de museu do erotismo. O trabalho mostra a obsessão pela nudez e pelas ereções permanentes –hoje sabemos que os portugueses já haviam descoberto o avô do Viagra. Depois fala dos bordéis e dos livros pornográficos. Mostro como permanecemos conservadores a despeito da liberação sexual, do nu frontal e ginecológico, do exibicionismo total. Por isso termino me perguntando quem somos. Na vida privada as pessoas são invariavelmente racistas e homofóbicas, mas na vida pública topam tudo. São alegres, tudo é válido, sem limites. Questiono essa ambiguidade. Somos seres de duas caras. Não adianta ser a oitava economia do mundo se não se têm cidadãos plenos. Enquanto formos um em casa e outro na rua fica muito difícil. Os traços de racismo, homofobia e machismo atravessam a história do Brasil – uma pena.

Um dos temas que mais lhe incomodam é a pedofilia...

Algumas questões atravessam nossa história. Eles só vão mudando de feição. É o caso da pedofilia. Aparece lá atrás, nas visitas da Inquisição. O inquisidor, contudo, não está preocupado com as crianças, mas com o desperdício de sêmen. O que importa é o pecado de Onã [a masturbação]. Depois reaparece nos discursos dos higienistas, no final do século 19. São os primeiros estudos sobre exploração sexual que temos no Brasil, com a descrição das crianças abandonadas, magras, com pústulas, que se dão para ganhar um pedaço de pão e que não estão na escola. Hoje, falamos nos sites de pedofilia. Enquanto isso, grande parte dos casos são acobertados pelos pais, principalmente os que se calam em troca de algum benefício, para ter acesso ao mercado de consumo. A sociedade segue cobrindo os velhos problemas com roupas novas.

Sei que não é seu objeto de estudo, mas você é a favor da educação sexual?

Curiosamente, duas ditaduras, a do Getúlio e a militar, propuseram a educação sexual. Era bastante inovador. Não sou psicóloga nem psicanalista, não iria me aventurar, mas acho que estamos vivendo uma espécie de paradigma da vulgaridade completa, inclusive da vulgaridade sexual. O desejo se coloca na nossa sociedade de uma maneira muito superficial. Até os anos 50, o desejo era despir uma mulher. Nem pornochanchadas dos anos 70 mostravam um nu frontal. Havia todo o cuidado de o olhar despir o outro. Hoje, uma criança diante de uma tela de computador vê um nu ginecológico. Me pergunto onde está o desejo. Meu trabalho questiona isso.

Você rompeu com a academia?

Pode escrever que saí da USP para poder me dedicar a uma carreira que me livre de amarras. Eu tentei, de verdade, mas é muito chato. Vivi na Europa, aprendi que há muitas maneiras de contar histórias. Não dá para ficar com aquele negócio de nome, data e regência. Ninguém pode gostar de história assim. Eu queria me sentir liberada da visão acadêmica. Moro numa chácara, cercada de galinhas. Não posso fazer um livro como esse sem pesquisas universitárias, mas prefiro escrever para o grande público.

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