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Os 23 moradores do Instituto Paranaense de Cegos passam a maior parte do tempo quietos, tomando sol ou fumando no pátio | Fotos: Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo
Os 23 moradores do Instituto Paranaense de Cegos passam a maior parte do tempo quietos, tomando sol ou fumando no pátio| Foto: Fotos: Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo

Fontes de renda

As fontes de renda do IPC são distintas e a movimentação é de cerca de R$ 100 mil mensais, segundo a atual direção. A instituição possui cinco salas comerciais e alguns terrenos, frutos de doações, que rendem aluguel. Os moradores são mantidos, em grande parte, pelo benefício que recebem do governo federal, de cerca de meio salário mínimo, além da aposentadoria. Conforme Enio da Rosa, metade do dinheiro é deixado no instituto e o restante é depositado na poupança deles. As regras estão em contrato assinado pelos moradores. A instituição também recebe recursos de convênios com o poder público e de outros projetos, além de verba de emendas parlamentares. "O IPC poderia receber mais dinheiro, mas nós paramos no tempo. Antigamente, as pessoas vinham aqui e deixavam cheques de R$ 3 mil, R$ 4 mil, de uma bolada só. Isso não acontece mais", comenta Rosa.

Aulas e arte para os jovens

Em uma das salas dos fundos do Instituto Paranaense de Cegos (IPC), diametralmente oposta às dependências dos idosos, floresce uma juventude vibrante. Paulo (nome fictício), de 10 anos, me recebe na porta e me leva pela mão para dentro de uma sala de aula. Ele me mostra a sua turma: quatro crianças com baixa visão que estão tendo aula de Desenho no projeto "Ver com as Mãos", bancado pelos gigantes HSBC Solidariedade e Criança Esperança.

As aulas são de atividades ligadas às artes, como música, teatro e pintura, além de capacitações para profissionais trabalharem com a inclusão de deficientes visuais, como instruções de áudio-descrição – em que um instrutor descreve obras de arte, peças de teatro ou filmes para aqueles que não estão vendo, juntando informações de contexto para aumentar a compreensão.

A professora Diele Pedrozo Santo, que coordena o projeto, explica que as aulas são divididas entre os alunos cegos e os com baixa visão, mas todos acabam tendo as mesmas aulas em horários diferentes. "Estamos organizando um passeio ao museu. Fazemos sempre que dá. Não é porque eles não podem ver que não podem apreciar arte", afirma. Ela reclama que a estrutura para deficientes visuais em museus, cinemas e outras espaços culturais ainda é insuficiente para inserir o público nesses locais.

As dependências do instituto também comportam a Escola Professor Osni Macedo Saldanha, que tem atividades educacionais especiais para alunos cegos ou com baixa visão no contraturno escolar, com aulas voltadas a uma vida autônoma. Os alunos aprendem até como pegar ônibus, escrever com letra cursiva e cozinhar. Também são oferecidas aulas de reforço escolar, Educação Física, Arte e Informática com professores da rede estadual de ensino.

Ex-aluno da escola, Tiago Silva, 18 anos, faz parte da seleção brasileira de futebol de cinco (o futebol jogado por deficientes visuais). Ele passa uma semana por mês no Rio de Janeiro, onde ocorrem os treinos. "Eu sempre venho jogar bola com a piazada", diz, se referindo aos alunos da escola que o acompanhavam na quadra do IPC.

  • João Maria Leal quebra o silêncio do IPC com a sanfona que aprendeu a tocar sozinho
  • O morador José Maria Ferraz Sereno perdeu a visão aos 55 anos depois de ter um AVC. Ele se ressente porque os médicos de Marília (SP) acharam que ele estava mentindo quando disse que não enxergava mais. Se tivesse sido remediado antes, diz, poderia ter recuperado parte da visão
  • Moradores aproveitam o dia bonito para tomar banho de sol no pátio da instituição, fumar cigarros de palha e jogar conversa fora. Cada um veio de uma cidade diferente do interior do Paraná, deixados por famílias que não podiam mais cuidar deles
  • Odair Araújo fuma um cigarro de palha. Ele é um dos poucos moradores do IPC cuja família continua visitando. Os filhos aparecem uma vez por semana
  • Tiago Silva joga na Seleção Brasileira de Futebol de Cinco, a modalidade do esporte voltada aos cegos ou pessoas com baixa visão. Ele frequenta o instituto semanalmente para jogar bola com os alunos da Escola de Educação Especial Professor Osny Macedo Saldanha, que fica no IPC, da qual é ex-aluno
  • Alunos da escola especial que fica no IPC jogam bola no intervalo. Eles têm aulas no contraturno para ajudar na independência e mobilidade, como aprender a ler em braile e até a pegar ônibus
  • A pelada é informal, mas se jogado profissionalmente, o futebol de cinco exige que os jogadores coloquem vendas nos olhos. Isso para que todos – cegos e com baixa visão – fiquem em pé de igualdade. Só o goleiro tem visão liberada
  • João Maria toca a sanfona que ganhou de uma doação. Passa boa parte do dia tocando e diz que aprendeu sozinho. Apesar de tocar bem, o som incomoda outros moradores, que preferem o silêncio. O único companheiro é Edenílson, que tem deficiência mental
  • Dona Maria (nome fictício) passou os últimos 70 anos no instituto. Ela chegou com 17. Hoje não escuta e mal fala. Dorme abraçada a uma boneca
  • Um dos moradores espera no quarto a hora de tomar café. Eles são guiados pela programação do rádio e pelos relógios que
  • José Martins, conhecido como Malandro, diz que sente falta da
  • Amigos se reúnem para ouvir rádio em um dos quartos. A preferência é por sertanejo de raiz
  • Moradores jantam sob o olhar de Jesus Cristo. As horas das refeições são as mais aguardadas. Neste dia, havia arroz, feijão e carne de panela com batata
  • O IPC já abrigou cerca de 200 moradores ao mesmo tempo. Hoje são 23 – e são os últimos. O instituto não acolhe novos moradores desde 2009. Na última semana de maio faleceu o ‘seu’ Afonso, que emendava um cigarro no outro. Ele tinha acabado de fumar, estava sentado do lado de fora com outros moradores, tomando sol, quando caiu no chão. Enfarto fulminante

Vinte e três universos se desenrolam por trás de janelas sem cortinas. O olhar vago e descoberto denuncia: são pessoas que deixaram de enxergar há muito tempo. São os últimos 23 moradores do Instituto Paranaense de Cegos (IPC), organização da sociedade civil que abriu as portas há 75 anos e hoje luta para se reinventar após escândalos de corrupção e superfaturamento de antigos diretores. O instituto, que acolhia deficientes visuais de baixa renda, deixou de receber internos há cinco anos. Em outros tempos, a instituição chegou a ter 200 moradores ao mesmo tempo.

SLIDESHOW: Veja mais imagens do IPC

O fim do acolhimento se deu com a chegada do terceiro interventor designado pela Justiça para tocar o IPC em uma década, o professor Enio Rodrigues da Rosa – que tem baixa visão. O diretor entende que o IPC deveria ser revitalizado de modo a inserir os deficientes visuais na sociedade e desconstruir a visão de que seriam "coitadinhos", dependentes que precisam de piedade. A vontade de mudar fez com que o instituto desenvolvesse uma série de atividades no contraturno escolar, como aulas de braile e artes, além de orientações para uma vida independente.

Os últimos moradores vivem seus dias em um clima modorrento de solidão. Eles não serão despejados, segundo a direção, porque não têm para onde ir. A maioria chegou jovem, em uma época em que ter algum tipo de limitação física tornava a vida independente quase impossível. Hoje já entraram em idade avançada, o que faz com que o local seja conhecido como "asilo".

O IPC é a única entidade específica para o acolhimento de deficientes visuais em situação de vulnerabilidade social credenciada pela Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS), que não deve ampliar o convênio para outras instituições. O ex-diretor e ex-morador Manoel Cardoso dos Passos, afastado pela Justiça, diz que é necessário que a cidade tenha um lugar de internamento para situações extremas. "Eles não têm outra opção a não ser ir para o instituto. Tem gente querendo se internar e não pode entrar", diz.

Os moradores passam o tempo perambulando pela instituição, tomando sol e fumando no pátio. Conversam pouco, sempre em tom baixo. De um dos quartos, o som constante da sanfona de João Maria Leal incomoda os outros moradores, que preferem o silêncio. João Maria é um dos internos mais recentes do IPC. Chegou ao instituto há oito anos, depois de ter sido abandonado pela família. Ele nunca enxergou com o olho esquerdo. Quando tinha 48 anos, perdeu a vista direita em um acidente. A esposa faleceu e os quatro filhos não aparecem para visitá-lo. "A vida hoje pra mim não tá legal. Quem já teve casa, esposa, uma vida, não se acostuma com internato", lamenta, ao som da sanfona que aprendeu a tocar sozinho.

Escândalos marcam a crise do IPC

As polêmicas do Instituto Paranaense de Cegos (IPC) não passam despercebidas pelos moradores. A imagem criada por eles é de que o instituto é uma grande fonte de riquezas e que os dirigentes antigos ganharam muito com ele. Não é à toa: ex-administradores respondem na Justiça por acusações de desvio de dinheiro e enriquecimento ilícito, o que teria "dilapidado" boa parte do patrimônio do IPC ao longo dos últimos anos, segundo o atual diretor, Enio Rodrigues da Rosa.

A guerra começou em 1996, quando um grupo de cegos acampou por seis meses em frente ao IPC, na Avenida Visconde de Guarapuava, em Curitiba. Eles queriam assumir a direção do instituto e conseguiram. "Foi pelas mãos dos próprios cegos que o instituto atingiu a sua pior crise", lamenta Rosa. Um dos moradores resume a situação da seguinte maneira: "Entraram com chinelinho de dedo e quando saíram tiveram de mandar carregar baús cheios de coisas".

O último diretor, Manoel Cardoso dos Santos, foi afastado em 2009. Ele foi o líder do acampamento improvisado na Visconde. O processo que ele responde ainda corre na Justiça e tem cerca de 1,6 mil páginas. Santos foi acusado pelo Ministério Público de ter desviado verbas e colocado terrenos do instituto em seu nome. "Era caótico o quadro que a instituição passava, receitas e despesas totalmente desequilibradas, pendendo obviamente para um saldo negativo por mês, em torno de R$ 35 mil", diz um trecho do documento.

O texto cita que uma propriedade, avaliada em R$ 700 mil, foi ocupada por Santos, onde montou uma fábrica de vassouras e um lava-jato para o filho. Por telefone, Santos afirma que uma ex-diretora do IPC passou o terreno para o seu nome de forma legal em 1989. Ele diz que o lava-jato nunca existiu e que os supostos desvios de verba teriam sido um mal-entendido. Segundo ele, o instituto tinha de pagar 48 ações trabalhistas e a Justiça confiscava toda a verba que entrava. "Isso eles chamaram de desvio", disse.

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