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Vídeo:| Foto: Reprodução RPC TV

Cerca de 70% dos curitibanos falam com "erre" puxado e se orgulham de não terem nascido aqui – ou pelo menos de serem filhos de forasteiros. Estranho? Espere até ver onde moram. Esse exército de 1.153 milhão de pessoas anda de ônibus e demora pelo menos uma hora para chegar em casa. Cerca de 53% das ruas por onde passam são de antipó, não há árvores na calçada [calçada?] e por perto tem sempre um centro comercial com mais lojas do que se possa contar nos dedos. A maior parte dos letreiros dos estabelecimentos é pintada à mão. Praças e parques são raros, mas há quem plante hortas e crie porcos e galinhas no quintal. Não tem banco nem grande redes de supermercados – embora não faltem bares e sorveterias com preços de ocasião. Além de igrejas – aos montes, rivalizando com tentadoras mesas de sinuca. Ter um vizinho que more em ocupação ou loteamento irregular "é batata". Ser amigo desse vizinho, também. Só falta mesmo uma placa na rodovia: "Bem-vindos a Curitiba do Sul".

A descrição acima é imperfeita, mas se aplica a boa parte dos bairros que formam seis das nove regionais da capital (veja info): Portão, CIC, Pinheirinho, Bairro Novo, Cajuru e Boqueirão. Com exceção de trechos urbanizados há mais tempo e já incluídos no padrão Curitiba de qualidade, o grosso dessa geografia tem pouco a ver com a cidade modelo que vingou na Zona Norte e correu mundo. Para quem mora em bairros como Boa Vista, Bacacheri ou São Lourenço e nunca se aventurou para muito além da Rápida do Portão, a descrição de Curitiba do Sul parece brincadeira. A recíproca é verdadeira. Paisagens primeiro-mundistas como a Avenida Munhoz da Rocha – para citar apenas uma – são coisa de cinema para quem mora e trabalha nas cercanias do Bairro Novo.

Mesmo assim, é raro em Curitiba alguém se apresentar como da Zona Norte ou da Zona Sul, à semelhança do que acontece no Rio de Janeiro. A cultura de bairro, aqui, é mais forte. Não fosse um detalhe: essa prática está por um triz. O crescimento urbano na casa de 1,83% ao ano se concentra nas áreas pobres, não nas nobres. Um único projeto habitacional no Bairro Novo, por exemplo, traz 50 mil pessoas num estalar de dedos. O Tatuquara, também no Sul, de acordo com cálculos da prefeitura, em sete anos passou de 34 mil habitantes para a casa dos 60 mil. Atender a essa demanda é correr na contramão de uma escada rolante acelerada. Noves fora, tornou-se cada vez mais comum cruzar com quem não faça a mínima idéia de como seja a Vila Conquista, na CIC, ou o Ulisses Guimarães, no Pinheirinho. Nasce a cidade arquipélago, formada por ilhas distantes. E em certo sentido, são mesmo.

A Zona Norte é mais verde. Só a bem-nascida regional da Boa Vista, por exemplo, tem sete parques, além de árvores nas ruas. Os salários por lá também são infinitamente melhores – a partir de cinco mínimos, ultrapassando 20, um sonho para quem se vira entre três e cinco salários [por família] nos rincões modestos da Zona Sul. De todas as diferenças, com folga a mais intrigante é que nas bandas de Norte ainda habita o curitibano da gema – um tipo que há quem jure estar ameaçado de extinção. Ele se orgulha de ser daqui e é exigente à beça, de acordo com descrição da cirurgiã-dentista Janaína Lopes Gehr, 45 anos, coordenadora da Regional da Boa Vista, função que a coloca em contato direto com a população. "É um público especial, participativo, consciente", diz, sobre os portadores de uma lista de reivindicações que se alternam entre ralhar contra terrenos baldios, amaldiçoar pichações e – creiam – lamentar riscos ao meio ambiente. Normal – a natureza é o tesouro do Norte.

A Curitiba do Sul, por sua vez, pode não ser assim tão bela e confiante, mas tem o que ensinar para os vizinhos. Vizinhos, não conterrâneos. Curitibanos "de lá" prezam em lembrar que vieram do Norte... do Paraná ou de qualquer outra região. Sua história com Curitiba tem pouco a ver com nonnas em carroças ou com foragidos da Polônia, mas com a conquista da metrópole, onde enfrentaram falta de água e de luz, desemprego e lonjuras. "É passado", dizem. E não se espante se um deles sacar uma foto mostrando como a vida melhorou. Apesar da violência. A prosa pára por aí: a turma do Sul prefere sair à francesa, assobiando, a falar de tráfico e afins.

Pudera – estar mais ao Sul do Pinheirinho já é uma trabalheira danada, que dirá se meter o nariz onde não é chamado. Naqueles lados não tem rotina. Além da distância, há os êxodos suburbanos, com gente indo e vindo de uma vila a outra, ora em busca de aluguéis mais em conta, ora caindo na esparrela dos condomínios clandestinos. Duzentos mil curitibanos sulistas estão sujeitos à maré-baixa da habitação. Por esses dias, por exemplo, cerca de três mil pessoas – 598 famílias – da ocupação Terra Santa serão relocadas. O povo do Norte mal pode imaginar o que isso significa.

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