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Às terças-feiras, eles fazem tudo sempre igual. Às 8h30, o administrador de empresas Luciano Planca, 43 anos; o eletrotécnico José Araújo da Silva, 63; e o auxiliar financeiro Claudecir de Souza Santos, 31, estão a postos – no bairro Rebouças, entre a Faculdades Curitiba, o Colégio Militar e um imenso parque de bolinhas – para acompanhar o descarregamento de quatro toneladas de verduras e legumes cultivados por 120 pequenos agricultores de Contenda e São José dos Pinhais. Em poucas horas, o que estava na carroceria do caminhão Gaitero Véio vai estar dividido em Kombis de 80 entidades beneficentes, atingindo uma média de 25 mil pessoas em Curitiba e região metropolitana.

Luciano, José e Claudecir são personagens de uma cidade praticamente desconhecida – a cidade que distribui alimentos para quem tem fome. Esse grupo segue suas próprias leis. Como está ligado a igrejas, a mais importante é a do silêncio sobre o bem que se faz. Daí essas ações não aparecerem nas estatísticas.

A atuação das igrejas, contudo, já não cabe nas sombras. Campanhas como a do sociólogo Betinho e o Fome Zero projetaram uma prática que é o feijão-com-arroz da maioria das confissões. Aos poucos, várias delas trocam a discrição por tabelas e relatórios que podem informar e melhorar a atuação do poder público. "O Betinho deixou visível o problema da fome e o tornou uma política pública. Essa política só é possível com a integração do estado e da sociedade civil", comenta a socióloga Zélia Passos, coordenadora do Programa Especial de Combate à Pobreza da Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego e Promoção Social (Setp). "Há um senso de rede se formando", sugere Luciano Planca, sobre os avanços na consolidação de um Sistema Único de Ação Social que não ignore as igrejas.

A mudança de mentalidade vem em boa hora. Ao pôr na balança quanto rende a "missa do quilo" realizada na maioria das 158 paróquias da arquidiocese, por exemplo, chega-se mais perto do impacto dessa distribuição. Melhor: na esteira dos números, a sociedade poderá aprender com as igrejas.

A rigor, as religiões partem de soluções simples que, se utilizadas em larga escala, podem mudar muitos projetos. Há, via de regra, contato direto com os beneficiados e criação de vínculos. Não há como ignorar o efeito dessas práticas, tanto que, em 14 e 15 de dezembro, quando acontece em Curitiba um encontro para discutir segurança alimentar e nutricional, a contribuição das igrejas deve ser um dos temas da hora.

Conta de multiplicar

O Censo 2000 informa que cerca de cem mil famílias vivem com meio salário mínimo per capita em Curitiba. O número é defasado, mas ferramenta para órgãos públicos. Para atender essa demanda, o estado do Paraná empregou neste ano R$ 15 milhões, sendo cerca de R$ 1 milhão na capital, segundo a Setp. O repasse vem em forma de incentivo à produção de renda, a exemplo da montagem de 132 cozinhas e 305 hortas comunitárias. Mas quando se pensa na comida que cai no prato dos pobres, é da ação das igrejas que se está falando.

A capacidade que as confissões têm de gerar toneladas de alimentos em poucas horas é um milagre digno de um épico de Cecil B. DeMille. No Natal de 2005, as paróquias do estado arrecadaram 192 toneladas – 30 delas saídas das comunidades de Curitiba e vizinhas. Como uma cesta básica pesa 30 quilos, foi o bastante para abastecer dez mil famílias, 10% do montante de pobres da região. Segundo Luciano Planca – coordenador da Ação Social, ONG onde às terças o Gaitero Véio estaciona –, as paróquias têm potencial para arrecadar cem toneladas em datas como o Natal, o que as torna benfeitoras de 30% dos miseráveis de Curitiba e região. Mas, como dizem os agentes do setor, a conta é infinita. A de Planca inclusive.

Em paralelo ao caminhão e às campanhas, a Ação Social administra outras 200 toneladas/mês de alimentos que chegam à sede do Rebouças de maneira bem provinciana. Alguém passa a mão no telefone e avisa: "Vizinho, ganhamos uma carroceria cheia de mamão e não temos como consumir. Para quem a gente pode repassar?"

"Hoje deve chegar um caminhão de jabuticaba. Da mesma maneira vem milho e feijão. Outro dia foram 500 quilos de frango que o Asilo São Vicente não tinha como dar conta. A gente quer enxergar melhor a quantas pessoas essa troca beneficia", ilustra José Araújo da Silva, expert em movimentos sociais em Curitiba. Ele é capaz de descrever o trabalho das hortas comunitárias da CIC e listar quais das 158 paróquias enfrentam a pindaíba. "A mais carente é a Nossa Senhora Auxiliadora, em Piraquara", informa. A conversa avança. Segundo Planca, paróquias centrais – que geram êxodos atrás de novenas – são centros de peregrinação religiosa tanto quanto celeiros de comida. É o caso da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no Alto da Glória, e seus 30 mil fiéis das novenas de quarta-feira; e da Nossa Senhora do Guadalupe, no Centro, onde o padre Reginaldo Manzotti arrasa quarteirão em suas missas de dois mil fiéis.

Administrando as sobras, a organização abastece 230 entidades, atingindo em média 70 mil pessoas por mês. O trabalho, que ganhou impulso há dois anos, quando passou para a administração do padre José Aparecido Pinto, tem tudo para se tornar modelo para os programas sociais de qualquer canto e de qualquer lugar. Eis a questão.

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