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A antropóloga Mirian Goldenberg: temas marginais à academia, conversas com a mídia e paixão confessa pelo leitor | Divulgação
A antropóloga Mirian Goldenberg: temas marginais à academia, conversas com a mídia e paixão confessa pelo leitor| Foto: Divulgação

Por uma história brasileira das macaquices

O pesquisador diletante que, à maneira da antropóloga Mirian Goldenberg, queira estudar a natureza do riso no Brasil, seus sorrisos e quetais, há de se deparar com estantes vazias. Esse não é o tema preferido de ensaístas em geral, ainda que – como es­­­creveu o filósofo e escritor Ro­­­berto Gomes no seu indispensável Crítica da razão tupiniquim – o humor seja a nossa filosofia.

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Ode à alegria

A antropóloga Mirian Goldenberg adianta algumas histórias de riso recolhidas durante a pesquisa Corpo, envelhecimento e felicidade, ainda sem data de lançamento.

Uma médica, de 53 anos, disse à pesquisadora que é por meio da risada que está descobrindo quem é de verdade, do que gosta, o que lhe faz feliz.

"Sabe uma coisa que descobri tarde demais? A gente passa a vida inteira tentando agradar o outro: os filhos, o marido, os amigos. Só agora, depois de velha, descobri que tenho que aprender a agradar a mim mesma. Passei a vida inteira dependendo do olhar e da aprovação dos homens. Nunca fui realmente feliz e sempre me senti muito só. Estou tentando descobrir o que me faz feliz, as coisas que me fazem rir, como vou viver os poucos anos que me restam de uma forma realmente satisfatória. Estou tendo que aprender tudo de novo, descobrir quem eu sou, descobrir o que eu gosto. As coisas que me fazem rir me mostram o caminho que devo seguir daqui por diante."

Um fotógrafo, de 54 anos, disse à entrevistadora que não entende porque as mulheres não gostam das rugas conquistadas com o tempo.

"Quem ri muito, esculpe as próprias rugas. Dá para fazer a leitura de como foi a vida de uma pessoa pelas suas rugas e marcas de expressão. Se ela foi amargurada, sua boca fica caída. Se ela riu muito, vai ter rugas lindas. Não importa a quantidade de rugas, mas a qualidade das rugas que se têm com a risada. A risada dá um pé de galinha lindo. Uma mulher mais velha é linda quando ri muito. Eu me afasto das pessoas que não riem, especialmente das mulheres.".

Uma aeromoça, de 50 anos, contou que cada vez que ri sente que rejuvenesce cinco anos, que libera endorfina, que faz uma verdadeira ginástica no rosto, no corpo e na mente. Diz também que a risada é ainda mais importante do que o sexo. Para ela, a risada significa liberdade, prazer e saúde física e mental. Cada risada, para ela, é uma verdadeira terapia.

"Eu acho graça de tudo, gosto muito de rir de mim mesma. Eu faço muita piada de mim. Sou desastrada, levo tombo, falo bobagem. Tenho um amigo que me faz chorar de rir, faço até xixi na calça de tanto rir. Quando rio de gargalhar eu sinto que rejuvenesço cinco anos. Dou uma gargalhada e vou para os 45 anos. Botox não deixa rir. É uma estupidez. Eu fico com ruga, mas fico feliz. Para mim, rir é uma terapia. E o melhor: é de graça. A graça é uma graça de graça."

Em tempos idos, um pesquisador que anunciasse estar estudando o riso – essa prática tão brasileira quanto o carnaval, o futebol e o doce de abóbora – certamente teria de conter os risos da audiência. Haveria, em tese, questões mais sérias sobre as quais se debruçar – da violência à fome, do machismo à habitação, das enxaquecas às joanetes.

Não é o que pensa a antropóloga Mirian Goldenberg, vinculada à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desde o início da década de 1990, quando roubou a cena ao publicar Toda mulher é meio Leila Diniz, essa santista radicada no Rio mostrou que não há buraco de porta que não possa ser espiado pelos altos estudos acadêmicos. Ela estudou o comportamento das amantes, dos homens casados que têm amantes, as ansiedades das mulheres com mais de 50 – as ditas "coroas" – e o corpo das e dos cariocas.

De sola, a estudiosa de temas inesperados revelou outra faceta – a de intelectual midiática, figura que parecia existir apenas em terras francesas. Na contramão de boa parcela de sua tribo – que considera os meios de comunicação um atentado ao pensamento elaborado –, Mirian participa da rotina da imprensa, "tirando proveito" de uma de suas paixões confessas: a interação com o público. "Adoro receber e-mails de leitores e telespectadores", admite.

Ultimamente, o que não tem lhe faltado é plateia. Para desenvolver seu último estudo – uma pesquisa ainda inédita sobre o valor do riso na cultura nacional –, Mirian aplicou cerca de 500 questionários e fez uma saraivada de entrevistas. Tem rido muito. E se convencido que a alegria não é uma imagem bonita que os brasileiros fazem de si mesmo, mas a "roupa com a qual estão vestidos". Confira trechos da conversa com a antropóloga:

Reza a lenda que sua mais recente pesquisa – sobre o riso – nasceu de uma saia-justa na Europa. Você riu fora de hora e de lugar?

Estava na Alemanha, em 2007, dando conferências nas universidades de Berlim, Munique, Bremen, entre outras. Fiquei meio sem graça na Alemanha, não só pelo sorriso, mas por usar muito as mãos e o corpo para me expressar. Eles são muito mais controlados com o próprio corpo. Lá, eu percebi como o nosso corpo fala. Me sentia "exótica". Como nas minhas pesquisas o sorriso e a risada já apareciam como importantes elementos da sedução, resolvi estudar o papel da risada em nossa cultura.

Por que os brasileiros dão tanto valor a esse código?

Comecei a pesquisa em junho de 2010. A minha hipótese, seguindo as ideias de Gilberto Freyre, é que a risada é uma importante forma de aproximação e de comunicação na cultura brasileira. Freyre fala, em Sobrados e Mucambos, que o sorriso, o toque sutil, o sorriso aberto, a simpatia e o uso diminutivo foram formas que os ex-escravos usaram para se aproximar da elite. Não posso falar de todas as culturas, mas com certeza rimos muito mais do que na Alemanha ou na Fran­­­ça, países que estou pesquisando. Temos uma imagem de povo feliz, que busca o prazer, informal, simpático, caloroso. Muitos estrangeiros ficam completamente seduzidos por essa imagem.

Há uma década houve uma febre de estudos da felicidade – a chamada "psicologia positiva" ou "nova ciência da felicidade". Daniel Gilbert, de Harvard, virou referência no assunto e a cadeira que leciona, a mais disputada. Seus estudos dialogam com essa tendência?

Minha pesquisa tem como título "Corpo, envelhecimento e felicidade". Fiz 50 entrevistas em profundidade, apliquei 500 questionários, fiz grupos focais. Estou mergulhada no tema, lendo inúmeros livros e analisando o material que já coletei. Tenho perguntado para homens e mulheres sobre a felicidade. E, para minha surpresa, descoberto que quanto mais velhos são os meus pesquisados, mais livres e felizes eles se sentem. Envelhecer tem o seu lado positivo, desde que com saúde e dinheiro para viver bem. E descobri também que as mulheres gostariam de rir muito mais.

Você está se divertindo?

Muito. Aprendi bastante sobre mim mesma com a pesquisa. Sou filha de mãe polonesa e pai romeno e posso dizer que a risada estava menos presente na minha vida até o início da pesquisa. Tenho rido muito mais agora. Pena que não comecei mais cedo.

O educador e teólogo Rubem Alves diz que o crescimento das religiões neopentecostais, a partir dos anos 1990, trouxe a "obrigação" da felicidade. No mundo corporativo, idem, recrutam-se os mais alegres. O "riso do brasileiro" virou mercadoria?

Não acredito que existe uma ditadura da felicidade ou a obrigação de ser feliz e muito menos que podemos escolher ser feliz ou não. O que procuro compreender é o significado da felicidade para diferentes segmentos sociais e a importância de ser feliz, de rir, de ter prazer. Não julgo as respostas, tento compreendê-las a partir da lógica dos meus pesquisados.

Por que se estuda tão pouco o humor e o riso no país, apesar de sua onipresença na vida brasileira?

Talvez por uma visão preconceituosa, por acreditar que é um tema pouco relevante em uma cultura com tantas questões "mais sérias": violência, desemprego, criminalidade, corrupção, problemas de saúde, educação.

O "brasileiro sorridente" não seria um mito tão bem construído quanto o "brasileiro cordial"? Nosso gosto pelo riso não pode ser confundido com incultura, ingenuidade, superficialidade?

Algumas pessoas responderam que quem ri muito pode parecer superficial, irresponsável, bobo, imaturo. Mas só quando existe um exagero e a risada está fora de lugar e de hora. A grande maioria acha que o riso é algo agradável e que as pessoas que sabem fazer o outro rir são mais inteligentes e sedutoras. Gosto de pensar que vestimos a nossa cultura, mais do que vestimos a roupa que usamos. A nossa cultura está incorporada em nós, a risada está culturalmente em nosso corpo, como dizia Gilberto Freyre. Não temos muito como fugir da nossa cultura, que nos ensina e estimula a sorrir e rir desde que nascemos.

Você pesquisou Leila Diniz, o corpo dos cariocas, as mulheres coroas. O riso é parte de todas essas histórias?

No fundo, sempre busquei estudar temas que afetem diretamente as brasileiras: especialmente a busca por liberdade e por felicidade. Simone de Beauvoir me ensinou a ser livre, Leila Diniz me mostrou que é possível ser livre e feliz. Duas buscas presentes nas Coroas, livro que escrevi para mostrar que o envelhecimento tem muitos aspectos positivos.

Você tem uma relação muito aberta com a imprensa e seus temas de estudo fogem dos assuntos ditos acadêmicos. Os jornais a influenciaram na escolha do que estudar?

Sou viciada em jornais desde os meus 13 anos. Quando viajo e fico fora do país, por dois meses, peço para guardarem todos os jornais e leio, assim que volto, cada um, do início ao final. Ainda não me acostumei a ler as notícias só na internet, apesar de ser leitora de vários sites. Gosto de ler os jornais impressos e trabalho muito com as notícias como fonte de pesquisa e reflexão. Há alguns anos também sou colunista [Jor­­nal do Brasil e Folha de S. Paulo]. Gosto de escrever para os leitores e fazer com que eles reflitam sobre questões que são "invisíveis". Recebo dezenas de e-mails e, algumas vezes, centenas, quando as colunas são mais polêmicas. O reconhecimento dos meus leitores é a maior gratificação para o meu trabalho.

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