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Wagner Moura no papel do subsecretário Nascimento, em Tropa de Elite 2: um personagem antológico |
Wagner Moura no papel do subsecretário Nascimento, em Tropa de Elite 2: um personagem antológico| Foto:

Justiça

Uma vontade inconsciente

Para o médico psiquiatra Rui Fernando Cruz Sampaio, especialista em Psiquiatria Forense, agressividade faz parte da natureza humana. "Os animais são assim. O que nos diferencia deles são os mecanismos de controle social, como as leis, a moral estabelecida. Mas todos nós procuramos algo com que possamos nos identificar. Procuramos um ídolo, um mito. E, além disso, todo ser humano tem senso de justiça, principalmente no Brasil", diz.

Sobre a identificação da população com o Nascimento, o médico explica que as pessoas estão cansadas de viver sem segurança. "Para combater a insegurança, a população tem vontade de fazer coisas que não pode por causa dos mecanismos de. Quando ela vê a figura do Nascimento combatendo o crime, ela se identifica, aplaude. Ele faz algo que lá no fundo, todos nós gostaríamos de fazer. Mesmo que no inconsciente projetamos as nossas vontades, mesmo que ele seja produto de ficção", afirma.

Nascimentos de carne e osso no combate ao tráfico de drogas

Celebrada como a maior operação policial da história do Rio de Janeiro, a tomada dos territórios da Vila Cruzeiro e do Com­plexo do Alemão, até então dominados por facções criminosas, no início do mês, transformou as forças de segurança pú­­blica em entidade heroicas. A cena dos traficantes fugindo e dos policiais cravando uma bandeira do Brasil no alto do morro emocionou o país.

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Ficção e realidade viraram uma só em 2010. Enquanto o ex-capitão do Bope e atual coronel e subsecretário de segurança Roberto Nasci­­mento (interpretado pelo ator Wagner Moura) pregava a justiça nas comunidades em Tropa de Elite 2, o Bope de verdade impôs a mais dura derrota ao tráfico com a retomada do Complexo do Ale­­mão, no início do mês, no Rio de Janeiro.

Apesar de fictício, a personalidade do ano fracassou em uma rebelião no presídio de Bangu 1. Deu a volta por cima. Foi promovido. Venceu a guerra contra o tráfico de drogas. Batalhou contra as milícias. Combateu os problemas éticos da Polícia Militar carioca e foi à luta contra o sistema. Na continuação do longa-metragem mais polêmico dos últimos anos, que atingiu a marca de 11 milhões de espectadores, Nascimento assume um papel menos agressivo, entretanto não menos complexo. Os dramas pessoais, as angústias e as crises existenciais persistem.

Emotivo e irônico, os brasileiros transformaram-no em um he­­rói. Suscetível a críticas e elogios, o fenômeno Nascimento é tão grande que, apenas em um site de relacionamento da internet, é possível encontrar mais de 100 comunidades com Nascimento no título.

O ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho questiona o mito criado em torno de Nascimento. "O capitão Nascimento é criação midiática. Nascimento representa uma ética que a população brasileira estimula e aplaude. A ética de que matar pode, mas roubar não. A população acha que bandido bom é bandido morto", afirma. Segun­­do o ex-secretário, as autoridades devem resistir ao pensamento de Nascimento. Para exemplificar, ele cita a invasão do Complexo do Alemão. "Segurança pública é algo muito mais sério e complexo do que ir lá e invadir", diz.

O personagem do capitão Nascimento, no primeiro filme, desperta uma reação mais acalorada do público. Na figura do justiceiro insensível e honesto, ele vai ao encontro dos anseios dos espectadores. O principal deles, a solução do problema da violência urbana através do aumento da repressão, mesmo na base de tortura ou morte. Para os policiais e para a sociedade, tudo é perdoado em troca da confiabilidade ética.

No segundo filme, já então coronel e subsecretário, Nasci­men­­to vê em um convite a oportunidade de enfrentar o tráfico. Mas, na medida que o tempo passa, ele percebe que o inimigo é muito maior e complexo do que imaginava. Além dos problemas éticos que ele enfrenta na corporação, Nasci­­mento luta para reconquistar a atenção do filho, que está magoado pelas atitudes do pai.

Na opinião de Pedro Bodê, professor do Centro de Estudos em Se­­­­gurança Pública e Direitos Hu­­ma­­nos da Universidade Federal do Paraná, existem dois Nascimen­­tos: o do primeiro e o do segundo filme. "O Nascimento do primeiro, violento, empolgou muito mais a população. Uma sociedade institucionalmente violenta produz pessoas que querem saídas violentas. É o absoluto senso co­­mum de quanto mais violência, melhor", explica.

Para ele, o coronel Nascimento, no segundo filme, descobre que o problema é muito maior. Descobre que matar traficantes é enxugar gelo. "O problema está no que ele mesmo chama de ‘sistema’. O segundo Nascimento é a despolitização da segurança pública. Ele trata a segurança de forma mais técnica, menos política. Se a população aderir ao Nascimento do segundo filme, está no caminho certo. Se for do primeiro, é um equivoco, tanto que até o próprio personagem reconhece isso. Mas é uma infantilidade transformá-lo em herói", conclui.

De acordo com Bráulio Manto­­vani, roteirista dos filmes Tropa de Elite 1 e 2, o personagem Nasci­­men­­to tem características marcantes: têm princípios rígidos e age com integridade, segundo esses princípios. Ele não teme desafiar seus superiores para defender o que ele considera correto. Ao mesmo tempo, seu rigor o impede de problematizar suas próprias crenças e valores. "Nas­cimento é capaz de cometer atrocidades em nome de uma causa que considera justa. Com a iminência [e a felicidade] de se tornar pai, Nascimento reage inconscientemente às suas próprias ações violentas: treme, tem crises de pânico, sente culpa [cena em que a mãe do fogueteiro vai pedir-lhe ajuda para encontrar o corpo do filho que ele deixou à mercê dos traficantes]", afirma.

Segundo o roteirista, em Tropa de Elite 2, Nascimento ganha uma nova qualidade: é capaz de questionar sua visão de mundo e aliar-se a um adversário em nome do bem comum (e também pelo amor que sente pelo filho). "Ele se humaniza, por assim dizer. E é graças a essa transformação que ele consegue enfrentar um inimigo maior que ele: o sistema", diz.

Mantovani afirma que nunca imaginou que Nascimento se tornaria um personagem antológico. "E não estou certo de que isso aconteceria sem a contribuição do talento de Wagner Moura", revela.

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