Quem circula a pé pelo Centro da cidade deve conservar pelo menos três manias de curitibanos da gema: pisar o "solo sagrado" do Calçadão da XV (sob pena de sentir remorso), ficar esperto para não ser seguido pelo Sombra e cortar caminho por alguma das 24 galerias da região. Também é via de regra embaralhar-se com os nomes dessas ruas dentro de prédios e cercadas de lojas por todos os lados. Sete entre dez cidadãos tendem a confundir Lustosa com Tijucas, Suíssa (assim mesmo) com Minerva, Tobias de Macedo com Pinheiro Lima, Asa com Tijucas. Faça o teste. Caso a curiosidade não chegue a tanto, pode-se adotar a tese do arquiteto Rafael Dely, ex-presidente do Ippuc e um entusiasta desse formato de circulação urbana. "Toda cidade procura uma identidade. A de Curitiba está nas galerias."
Dely pode estar exagerando, mas é para enxergar melhor. Há exatos 50 anos as galerias desafiam todos os modismos inclusive seu maior concorrente, do qual são parentes próximos, os shoppings, apontados pelos comerciantes como verdadeiros vilões de folhetim. Os números são dignos de final de campeonato. No boca a boca, a estimativa é de entre 4 mil e 10 mil passantes por dia, isso em pelo menos metade das galerias. Só na Suíssa circulam 15 mil pessoas das 8 da manhã às 8 da noite, hora em que os portões se fecham e 36 lojistas encerram o caixa do dia. É pouco se comparado ao formigueiro humano do Müller ou do Curitiba que recebem 30 mil clientes cada, por jornada. Mas uma boa pedida se comparados os metros quadrados de um e outro. As galerias raramente ultrapassam 200 metros de comprimento por "oito passos" de largura, abrigando 30 lojas, quando muito. O Shopping Crystal, por exemplo, tem 44 mil metros quadrados e 250 lojas.
Os projetos de revitalização do Centro, impulsionados há cinco anos pela Associação Comercial do Paraná e há dois anos batizados como Centro Vivo, ainda não se debruçaram sobre as galerias. É quase uma regra: nem os condomínios, nem prefeitura, nem ACP dispõem de dados para confirmar que alguma coisa acontece da Galeria San Pietro, na Comendador Araújo, até o ponto em que a Galeria Andrade acaba, na Presidente Faria. O empresário Jonel Chede, coordenador do programa, contudo, as considera incluídas na dor e na delícia da região. Ele parte do cálculo de que 140 mil pessoas/dia circulam na XV, um público que chega ou sai dali também pelas galerias Lustosa, Minerva ou Tijucas, por exemplo. Este ano, os cupons de Natal para compras acima de R$ 30, com direito a sorteio de um carro renderam 560 mil inscritos. Um primor. A estratégia é traficada dos shoppings, mas reflete a massa de compradores de rua (e de galerias, supõe-se)
Um tour por esses minicentros protegidos do sol e da chuva, evidentemente, não é um pacote turístico pela Dinamarca. As galerias no entorno da Tiradentes há muito perderam a aura de elegância dos primeiros tempos, quando freqüentar o local só não era mais chique do que passear no Jockey Club. Marcos históricos, como o número 420 da XV, onde ficava a Schaffer, ficaram na saudade. Hoje, ali tem tatoo, muay thai (boxe tailandês) e roupas direto das fábricas. E a Galeria do Comércio, na Praça Osório, tem metade das lojas desocupadas embora tenda a se firmar como espaço alternativo (o que não combina com dourados e fumês, fazendo do ar "fim de festa" do local um ponto a favor).
Quem deixar de lado a tara neoliberal por resultados, contudo, há de encontrar nas galerias motivos de admiração. Melhor, vai se juntar a uma pequena legião de defensores desse modelo de comércio, convivência e arquitetura. Salvador Gnoato, arquiteto que virou sinônimo de defesa do patrimônio modernista em Curitiba, vê nas galerias um espaço da delicadeza urbana. Segundo ele, o modelo só não permaneceu em alta porque depois da construção de Brasília as cidades passaram a valorizar mais a funcionalidade do que o aconchego.
O arquiteto, Clóvis Ultramari, não por acaso um freguês das galerias do Centro, elabora teoremas e não poupa saliva para defendê-las como paisagens urbanas de primeira grandeza. Conectividade, dinamicidade, interatividade, otimização são algumas das palavras que utiliza para proclamar que as galerias são boas à beça pelo simples motivo que mantêm o pulso da cidade. É um aparelho circulatório. "A elas se chega a pé. E a pé se vai a lugares que não se iria. O shopping não tem esse poder. Galerias ajudam a manter viva a diversidade." Viva a diversidade.
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