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o debate essencial
A jurista Nadine Strossen, ex-presidente da American Civil Liberties Union (ACLU), no congresso “Liberdade de Expressão: O Debate Essencial”.| Foto: Paulo Ivan Dybas

O Judiciário não pode arrogar-se a função de tutelar os cidadãos dizendo quais críticas a pessoas ou instituições são legítimas ou não: essa foi a principal ideia defendida pelos debatedores do terceiro painel do congresso "Liberdade de Expressão: O Debate Essencial", sobre os limites do direito de crítica.

O evento foi organizado pela Gazeta do Povo e pelo Ranking dos Políticos com o apoio do Instituto Liberal, do Instituto dos Advogados do Paraná e da Federação Nacional dos Institutos dos Advogados (Fenia). Vozes influentes no tema da liberdade de expressão do Brasil e do mundo participaram de seis painéis nos dias 27 e 28 de setembro.

A jurista Nadine Strossen, ex-presidente da American Civil Liberties Union (ACLU) e uma das maiores especialistas em liberdade de expressão no mundo, estudou para o evento algumas decisões judiciais recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ela se disse especialmente chocada com censuras relacionadas a conteúdos críticos às cortes.

"Não só há, na minha opinião, um direito absoluto a criticar políticas de governo, autoridades do governo, como isso é na verdade uma virtude democrática e responsabilidade que devemos cultivar", afirmou.

Um dos focos do painel foi o caso do economista Marcos Cintra, que teve suas contas bloqueadas nas redes sociais após fazer meros questionamentos sobre o sistema eleitoral brasileiro e o TSE. Para Nadine, "é particularmente chocante que alguém seja punido por levantar dúvidas".

"Há um conflito de interesses, não? Uns juízes alegando que existe um interesse especial em proteger a integridade e a dignidade de suas profissões… E, vejam, eu tenho orgulho de também ser jurista, mas isso é muito incômodo para mim, especialmente porque nossos juízes federais têm mandatos vitalícios. Então, é especialmente importante submetê-los a críticas. Claro, eles não devem ser removidos do cargo só porque discordamos de algumas decisões deles, mas certamente precisamos ser livres para questioná-los e criticar suas decisões", comentou.

Ela comparou a situação brasileira com um caso americano de 1918, quando o político e sindicalista Eugene Debs, candidato à Presidência dos EUA em diversas ocasiões no começo do século passado, foi preso por um discurso em que simplesmente levantava questões sobre a participação dos EUA na Primeira Guerra Mundial. O caso ajudou a despertar a sociedade americana para uma maior defesa das liberdades civis, tendo como um dos efeitos a própria criação da American Civil Liberties Union (ACLU), que Nadine já presidiu.

Para ela, o caso é emblemático porque a ACLU nasceu para defender justamente o direito a criticar decisões do Estado no período eleitoral. "Não foi por acaso que começamos defendendo o direito de criticar e questionar políticas de governo durante as eleições. Não há um direito à expressão mais fundamental para a democracia e para as liberdades individuais do que esse", afirmou, para destacar a gravidade da decisão contra Cintra.

Fernando Schüler, doutor em Filosofia pela UFRGS e pós-doutor em Ciências Políticas pela Columbia University, observou que as dúvidas levantadas por Cintra não foram nem sequer ofensivas. "Os tuítes do Marcos Cintra devem estar no 1% dos mais educados da internet", ironizou.

Juízo sobre quais opiniões ou críticas são legítimas não cabe à Justiça

Para Schüler, o Judiciário brasileiro tem aderido à teoria da "hipossuficiência do cidadão": os juízes creem que as pessoas não podem, por si próprias, fazer o julgamento sobre a credibilidade das informações que consomem – elas precisariam da tutela do Estado para isso.

O especialista acredita que, por pior que sejam as escolhas dos cidadãos sobre as informações e opiniões que seriam legítimas ou não, a tutela estatal é uma alternativa pior. "Sou muito cético em relação à capacidade da Justiça de fazer esse juízo", afirmou.

Na origem desse problema, segundo Schüler, está a falta de adesão a princípios e a tendência ao personalismo, que resultam facilmente em arbitrariedades. Para ele, "a impessoalidade não fincou raízes na tradição brasileira".

Para a jornalista Paula Schmitt, o Judiciário brasileiro "parte do pressuposto de que as pessoas são incapazes de discernir". A tutela estatal, observou, impõe "o perigo de o remédio ser pior do que a doença".

Comentando um dos casos de censura que serviram como base para as discussões do painel – o do vídeo em que a campanha presidencial de Lula acusa o ex-presidente Bolsonaro de canibalismo – Paula destacou que, embora discorde do conteúdo do vídeo, foi contra a censura, por valorizar o princípio universal sobre a conveniência política.

O jurista argentino Fernando Toller, professor de Direito Constitucional da Universidade Austral, vê em algumas decisões do tribunal eleitoral brasileiro uma visão infantilizada do cidadão e um caráter "antijurídico".

Lendo a decisão do ministro Alexandre de Moraes sobre Marcos Cintra, Toller observou que um dos pressupostos de qualquer justificativa de decisão judicial – o de explicar a necessidade da decisão – foi omitido pelo juiz. O trecho em que Moraes tenta justificar a necessidade, segundo o jurista, poderia ser resumido na seguinte sentença: "É necessário porque é necessário".

Para Toller, "não se pode admitir que um tribunal se arrogue como garantidor da qualidade do debate", especialmente na corrida eleitoral, censurando críticas a políticos e instituições. "Se em algum momento a liberdade de opinião é necessária, é em um período eleitoral", afirmou.

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