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Miriam Brandão, no apartamento onde vivia com o desaparecido Renato: “Se toca a campainha, penso ser ele.” | André Rodrigues/Gazeta do Povo
Miriam Brandão, no apartamento onde vivia com o desaparecido Renato: “Se toca a campainha, penso ser ele.”| Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo

Procura-se

Nem sempre eles saem para comprar cigarro. Podem sair para comprar pão e não voltar. Há quem sofra de Alzheimer e quem não fez uso adequado de medicação. Esses e outros casos têm endereço certo na capital – o albergue do Resgate Social, no Centro de Curitiba. Não raro, famílias procuram seus desaparecidos na fila de moradores de rua em busca de pernoite. Os educadores contam essas histórias como "causos".

O andarilho

Os pés machucados foram o principal sinal de que um dos jovens à fila do albergue poderia ser um desaparecido. A assistente social Rosane Nunes de Deus e sua equipe desconfiaram que ele teria andado muito até chegar ali. Os modos e as roupas denunciavam que não morava na rua. "Precisamos ter perícia nessas horas. No bolso da calça dele encontramos uma passagem de Joinville. Achamos a família e descobrimos que o rapaz tinha deixado de tomar seus medicamentos."

A bela

Ela estava bem vestida, maquiada e passou a noite toda no Terminal de Santa Felicidade. A Ação Social foi acionada, mas a mulher não deixava ninguém se aproximar de sua bolsa – na qual deveriam estar os documentos. "Era arisca. Não dizia uma palavra", conta Rosane, sobre a desaparecida de 37 anos, legítimo personagem de novela. Restou arrumar um espelho e fazer com que a bela se olhasse. Ao se ver, disse seu nome, o que permitiu encontrar o marido, já em desespero.

O ressuscitado

A educadora social Ivanete Mendes tem fama de "pé quente". São seus os mais incríveis episódios da FAS. Certa vez, na madrugada, encontrou um rapaz na Vila Verde. Era de Cerro Azul. Levou-o até lá. Ao vê-lo, a mãe se benzia e gritava. O povo em volta. Tempos antes, a mulher tinha recebido um corpo como sendo do filho sumido.

Via-sacra

Cada órgão que pode ajudar a encontrar desaparecidos tem suas estatísticas. Nem sempre coincidem, o que impede fazer um diagnóstico com o perfil e a quantidade de pessoas que não voltaram para casa.

1. Delegacia Eletrônica – Fazer boletim de ocorrência eletrônico não costuma ser a primeira medida tomada por familiares de desaparecidos. Mas devia. O sistema se sofisticou e dá retaguarda para a tradicional Delegacia de Vigilância e Capturas, a DVC, que investiga 122 desaparecidos no Paraná. Nos últimos quatro meses a Delegacia Eletrônica fez 146 BOs de desaparecimento, com divulgação no Facebook: 62 (42%) foram localizados.

2. Sicride – Em se tratando de crianças, procura é feita por serviço especializado – que conta com 12 policiais, mais grupos de apoio no interior. A delegacia investiga 28 casos, alguns desde a década de 80. O órgão recebe em média três denúncias por dia.

3. Albergue da FAS – Um dos primeiros impulsos é achar que o familiar desaparecido perdeu a memória e virou mendigo. Daí a busca nos albergues. O maior deles tem 300 leitos – os moradores crônicos, cerca de 40%, costumam ser boa fonte de informação para parentes em busca. As suspeitas começam no preenchimento do cadastro, quando o candidato a uma cama não sabe o próprio nome. Não há dados oficiais.

4. IML – Atende entre 120 e 140 famílias de desaparecidos por mês. O instituto calcula que entre 30% a 35% das pessoas ali procuradas estejam vivas; 25% são localizadas nas 96 gavetas e que 40% se encaixem na categoria desaparecidos.

  • Anadir Alves de Jesus
  • Mãe do IML: Todos os dias, cerca de dez mães de desaparecidos procuram o serviço de assistência social do Instituto Médico Legal, o IML, em busca de informações sobre seus filhos. As assistentes as batizaram de
  • Anjos do IML:
  • Nas ruas, os sinais: Cartazes com fotos dos desaparecidos costumam ser pregados em postes e paredes do Centro de Curitiba. Com folga, o lugar onde mais informações são deixadas é nas dependências do albergue da Fundação de Ação Social, na Rua Conselheiro Laurindo, esquina com a Avenida Visconde de Guarapuava. Um dos anúncios de busca mais eficientes é o site de desaparecidos da Polícia Eletrônica, órgão da Polícia Civil. www.desaparecidos.pr.gov.br/desaparecidos
  • Busca no Facebook: Há quatro meses, o delegado Eduardo Castella, coordenador da Polícia Eletrônica, inovou o sistema de busca aos desaparecidos. Além dos mecanismos tradicionais, como o boletim de ocorrência pela internet, o setor passou a usar o Facebook. Dos 146 casos de desaparecimento no período, 62 foram solucionados. O sistema soma mais de 80 mil visualizações no período experimental
  • Senhora dos desaparecidos: A educadora social Ivanete de Lourdes Mendes, 51 anos, é conhecida na Fundação de Ação Social pelo faro para encontrar desaparecidos. Perdeu a conta de quantos homens e mulheres ajudou a devolver às famílias, em 12 anos de atividade. De sua lista fazem parte pessoas dadas como mortas e procurados pela polícia em outros estados. As táticas de Ivanete funcionam como um toque de alegria num universo cercado de tensões: ela não se intimida entrar em botecos, na periferia, perguntando pela identidade de algum hóspede da Fundação de Ação Social, vítima de perda de memória.
  • Perícia: A assistente social Verônica de Mattos Palião, 27 anos, observa as mochilas dos aproximados 300 hóspedes do albergue da Fundação de Ação Social, no Centro de Curitiba. Ali pode estar o nome de algum desaparecido, cujo nome costuma ser informado pela Polícia Eletrônica e pela Delegacia de Vigilância e Capturas. Fora a polícia, a FAS é com folga o órgão público que mais colabora com as investigações
  • A delegada das crianças: Há três meses, a delegada Luciana Novaes é a esperança da família de 28 famílias de crianças desaparecidas no Paraná. Algumas delas estão sumidas há tanto tempo que são hoje adultos. Luciana calcula atender em média três casos por dia, em geral formado por meninos e meninas que saem para uma aventura ou para se livrar de problemas domésticos.
  • O caso Brandão: A analista de sistemas Miriam Brandão, 45 anos, virou um símbolo das famílias dos desaparecidos no Paraná. Seu marido, o engenheiro Renato Brandão, membro de uma conhecida família de músicos da capital, saiu de casa numa manhã de 13 de setembro de 2011. O desaparecimento se deu quando ele pedalava uma Monark 74, parte de sua coleção de veículos vintage. QA bike foi encontrada na Graciosa. Cada vez mais solitária em sua busca, Miriam espalha cartazes e telefona para outros estados – em especial Santa Catarina, onde legislação própria obriga espaços públicos a exibirem o rosto das pessoas que sumiram

"Ele tem 1,67 metro e 67 quilos. É baixinho. Talvez esteja de barba. Não sei como meu marido fica de barba...", entristece-se Miriam Brandão, à porta do apartamento onde mora, no bairro Ahú, em Curitiba. "Ele" é o engenheiro Renato Brandão, 56 anos, desaparecido desde 13 de setembro de 2011, durante um passeio de bicicleta, levando a chave da casa e R$ 120. Ela não perde a oportunidade de descrevê-lo e de distribuir um dos 2,5 mil cartazes que imprimiu, com foto e telefone.

INFOGRÁFICO: Confira fotos dos locais onde familiares procuram por parentes que saíram de casa e não voltaram

Miriam é uma típica mu­lher de "desaparecido". Acre­dita que Renato está vivo. Não faz luto, nem pretende, apesar do tempo e da falta de pistas. Incluiu na sua rotina de mãe e trabalhadora o expediente de "buscadora" profissional. Precisa ter nervos de aço. Nos últimos dois anos, aprendeu a circular nos labirintos dos órgãos de segurança pública. E nos labirintos das ruas – não poucas vezes saiu pela madrugada, tirando cobertor do rosto dos mendigos, para ver se um deles não era o Renato – sem memória, mais magro e com barba, como supõe.

Há um imaginário em torno dos desaparecidos, explorado pela ficção, como se pode ver na novela Amor à vida; e pelo noticiário, a exemplo do sumiço do pedreiro Amarildo de Souza, em 14 de julho, na favela da Rocinha. Quem saiu de casa para "comprar cigarros" e não voltou, como se diz, pode ter sido vítima de atropelamento, latrocínio, "queima de arquivo", distúrbio mental, amnésia ou mesmo dissabores com parentes, para citar alguma das versões mais corriqueiras. Os familiares sempre se perguntam se teria sido enterrado como indigente. Ou se jaz num terreno baldio.

Quem atende no setor confirma. "Fim de tarde é sempre de angústia para quem tem parentes desaparecidos", diz a delegada Luciana Novaes, do Serviço de Investigação da Criança Desaparecida, o Sicride. "Tem família de desaparecido que liga diariamente para o albergue. Que vai todo dia IML. Já pensou o que é isso?", acrescenta Rosane Nunes de Deus, coordenadora na Fundação de Ação Social. "Os parentes descobrem que o mundo é muito grande. Onde vão procurar? É triste. Atendo pelo menos dez mães por dia. Muitas me contam que ouvem o filho chamando no portão...", acrescenta a assistente social do IML Edina Amato.

Tão incerto quanto os mo­tivos do desaparecimento e o destino do corpo é o nú­mero de brasileiros nessas condições. Há dados na De­le­gacia Eletrônica, no IML, na De­legacia de Vigilância e Capturas – órgãos da Polícia Ci­vil do Paraná – e na prefeitura (leia quadro abaixo).

Oficialmente, no Paraná, são 150 desaparecidos. Tudo indica que são mais. Some-se a isso a possibilidade nada absurda de que algumas dessas pessoas tenham cruzado uma fronteira torna qualquer hipótese uma missão impossível: ainda não se desenvolveu um mecanismo que cruze dados nacionais, o que parece longe de acontecer, apesar dos esforços de ONGs e mesmo de alguns setores do serviço público.

"O observatório dos desaparecidos é um projeto em gestação. Ainda vemos os setores que cuidam disso como lugares macabros, de tragédias, e não como um espaço de ciência e dados sobre a sociedade", lamenta o médico Porcídio Vilani, 66 anos, diretor do Instituto Médico Legal.

Ser ou não ser

Outro problema, contudo, é ainda mais difícil de ser mensurado pelas estatísticas – os estragos feitos às famílias. Passados em média seis meses do desaparecimento, os amigos e parentes tendem a retomar suas rotinas, restando para os mais próximos a solidão da busca e o "fantasma" do desaparecido. Toca o telefone, pode ser ele. A campainha... Um vulto na esquina, pode ser ele, com vergonha de se aproximar. Aquele carro de trás no trânsito. Será? À noite, um barulho na sala. Teria voltado? Sem falar nas contas bancárias e bens congelados, anos a fio, até que o caso se resolva.

"Sinto minha vida paralisada. Meu coração dispara a cada andarilho que vejo. Às vezes, penso que vou chegar do trabalho e encontrá-lo na frente do prédio. Subiremos a escada juntos. Tudo isso terá passado", conta Miriam, repetindo uma narrativa parecida à feita por outras pessoas que viviam na mesma casa de um desaparecido. É comum que tomem algumas atitudes – como doar todas as roupas ou fazer uma reforma na sala. Mas tendem a voltar atrás, mantendo escritórios e quartos intactos, confirmando o ser ou não ser que imobiliza aqueles que ficam.

"Já ouvi casos de gente que voltou oito ou dez anos depois, sem memória. E se for o caso dele?", pergunta Miriam, escolada por alarmes falsos: já procurou Renato num morador de rua de Primeiro de Maio, Norte do Paraná; num andarilho de Piçarras, Santa Catarina. Teve esperança ao saber de corpos achados pela Polícia Civil aqui e ali. Foi a programas sanguinolentos. Pagou videntes. Padeceu um trote de mau gosto. "Doutor Leocádio diz que ele está vivo. Vou continuar postando a foto do Renato no Face", diz a mulher do desaparecido.

Sem tranca na porta dos fundos

Noite de 17 de outubro de 2009. Marcelo Camargo de Jesus, 27 anos, assiste a um filme de Mazzaropi em companhia da mãe, Anadir Alves de Jesus. O telefone toca – convite para um bar. O rapaz diz "já volto", pega a bicicleta e nunca mais é visto.

Dona Anadir, hoje com 59 anos, perdeu a conta de quan­tas vezes descreveu seu filho para estranhos. "Ele é alto, magro, e gosta de se vestir com agasalhos da Adidas", explica. Ela carrega uma foto 3 X 4 na bolsa, deixa a porta dos fundos destrancada e nunca mais cozinhou nhoque, prato preferido do rapaz. Incluiu um endereço na sua rotina semanal: o IML. Às vezes, circula no quarteirão do instituto, à espera de coragem. "Eu acho que ele está morto. Mas quero enterrá-lo."

A assistente social Edina Amato diz que são tantas as Anadires que ela e suas companheiras de trabalho já pensaram em criar o grupo das "Mães do IML". São especialistas em longa espera. Não descansam. A cada nova ossada encontrada, rumam até lá, acreditando ser dessa vez que tudo vai se resolver. Embora não seja regra, esses desaparecidos crônicos e suas mães têm classe social – são homens, de baixa escolaridade, autônomos e não raro envolvidos com entorpecentes.

Desaparecidos

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