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McCarthy: autor de "A Estrada" vendeu a máquina de escrever que comprou em 1963 por 50 dólares. | Divulgação
McCarthy: autor de "A Estrada" vendeu a máquina de escrever que comprou em 1963 por 50 dólares.| Foto: Divulgação

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900 internos cumprem medidas socioeducativas em unidades da Secretaria de Estado da Criança e do Adolescentes. Desses, apenas 27 são meninas.

59 adolescentes que participam do sistema socioeducativo do estado estão em regime de semiliberdade – processo gradativo de retorno à família.

18 unidades funcionam como centros socioeducativos no Paraná.

Fonte: Secretaria de Estado da Criança e do Adolescente.

Aos nossos meninos e meninas

Uma cena não deve sair da cabeça de quem acompanhou os três dias de lançamento do projeto Luz, Câmara... Paz!. Na quinta-feira, em Fazenda Rio Grande, "I.", 18 anos, abriu a partitura, estufou o peito e tocou no trompete "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, fazendo a platéia esquecer por uns minutos o frio de congelar pingüins que fazia na última quinta-feira.

Impossível escutar uma das músicas mais famosas do país e não lembrar que garotos como "I." não tiveram muita sorte nessa "terra de Nosso Senhor". Resta ouvi-los. E ouvi-los é saber de histórias inacreditáveis de abandono e violência. Na unidade Joana Miguel Richa, "P.", 15 anos, contou no jornal feito pelos oficineiros que sofreu o primeiro abuso sexual dos 3 aos 11 anos de idade. O resto da história não é coisa boa de se ouvir. Hoje, a garota faz planos de voltar para o Sudoeste do estado, cuidar da mãe – que tem sofrimento mental – e se preparar para ser comissária de vôo. "É meu sonho", diz, com boné à moda garoto e fala veloz como um jato.

A aquarela brasileira de "D.", 18 anos, pouco mais de um ano de Joana Richa, também não é lá muito colorida. Antes de chegar a Curitiba, passou um ano na Febem, em São Paulo, onde dividia espaço com 118 meninas. "Era horrível", conta. Na nova casa, em Curitiba, são 30 colegas – duas delas grávidas. "Foram seis anos de barra pesada. Vir para cá foi minha salvação", diz a jovem que sonha ser promotora de Justiça.

"T.", 17, oito meses de unidade, também passou pela Febem paulista. Foram sete meses no inferno. Ela acha que o pior já passou, mas tem dificuldade de se perdoar pelo latrocínio que a fez perder a liberdade. "Quero contar o que fiz para os meus filhos. Para que não façam o mesmo", diz, sobre as crianças de 2 e 3 anos. O misto de culpa com sentimento de indignação é uma constante. "A gente não é bandido do jeito que a TV e o jornal mostram", defende-se "J.", interno do Educandário São Francisco.

No particular, é raro algum dos meninos e meninas dos Censes jurarem inocência, como acontece a rodo no sistema prisional. Para desconcerto de quem os ouve, os adolescentes são capazes de contar em detalhes o que lhes aconteceu, contrastando o rosto cheio de espinhas e a voz em formação com histórias que ficariam muito bem num filme de terror. É o caso do próprio "I.", que trocou a carreira de músico por assaltos à mão armada. "Estou pagando o que devo. Quero recomeçar", diz, agora com o trompete no lugar da pistola de fogo. Os instrumentos musicais, aliás, caem bem à turma das unidades. A 20 quilômetros de Fazenda Rio Grande, onde "I." é solista, o quarteto de flautas do Joana Richa se diverte até quando desafina. As aspirantes à música riem muito a cada nota perdida. Recomeçam. Erram e gargalham de novo. A platéia observa: elas são as nossas meninas. (JCF)

A semana que passou foi de aplausos – muitos aplausos – em três dos 18 centros de socioeducação para adolescentes em conflito com a lei (Censes) mantidos pelo governo do estado. Nas unidades Educandário São Francisco, em Piraquara; Joana Miguel Richa, em Curitiba; e Fazenda Rio Grande, cerca de 80 garotos e garotas privados de liberdade mostraram para a imprensa e convidados o resultado da última edição da oficina de jornal e audiovisual Luz, Câmera... Paz!, ministrada nos últimos quatro meses por jornalistas e educadores da Ciranda – Central de Notícias dos Direitos da Infância e da Adolescência.

O Luz, Câmera... Paz! funcionou como uma tribuna para que os internos dissessem como se sentem e com o que sonham. Tudo isso sem precisar queimar colchões, afiar estoques ou fazer reféns. Os rapazes e moças ganharam rosto, nome e deram seu recado enquanto apresentavam os vídeos e o jornal, cantavam raps ou faziam sessões de break e de street-dance.

Ter dado a palavra e a imagem à rapaziada é, com folga, o grande trunfo da oficina Luz, Câmara... Paz!. Apesar de ser uma bandeira do ECA condenar o trabalho infantil ou o abandono familiar, é incomum saber da boca dos próprios adolescentes privados de liberdade o que pensam a respeito desses e de outros assuntos. "Nossa intenção é mostrar que motivos trouxeram esse pessoal até aqui. Eles precisam de expressão. E quando falam – falam da violência que sofreram, lembram ao que foram submetidos. Nosso esforço foi fazer com que essa conversa gerasse uma cultura da paz", explica o jornalista Téo Travagin, 24 anos, idealizador do projeto em parceria com a educadora Lizely Borges.

Os oficineiros não jogaram a chance pela janela. Cantando ou fazendo as vezes de mestres-de-cerimônia, falaram pelos cotovelos de temas da hora, como a violência contra a infância, abuso sexual e redução da maioridade penal. São grandes debates nos quais, por ironia, viraram apenas figurantes.

Em momentos de maior licença poética, abordaram temas à flor da pele, como a discriminação racial e a imagem pouco cordata que parcelas da sociedade fazem dos adolescentes em conflito com a lei. "Nosso dilema é decidir se vamos tomar um gole a mais, se vamos pegar uma arma. É perceber que não temos nenhum estudo", disse um deles – numa peça de teatro improvisada, para uma audiência boquiaberta.

Mas nada teve mais força nas oficinas de 2007 do que os raps de autoria dos próprios internos – cantados mais de uma vez em cada uma das três unidades durante os encontros na semana passada. As músicas chegaram a estimular coros animados na hora de entoar refrões como "corta o coração ver a infância perdida num sinaleiro"; "não somos os monstros que acham que a gente é" – entre outros manifestos embalados pela mais legítima cultura hip-hop. Foi emoção em estado bruto. "Nós queremos mostrar que não somos o que pensam. Não somos bandidos. Poder dizer isso para vocês é uma vitória", diz G., 18 anos, dez meses de Educandário São Francisco.

Os três vídeos-piloto produzidos pela garotada deixaram uma certeza. Ao se ver diante das câmeras, ou gravando os colegas, fica mais fácil se projetar e, por extensão, projetar os próprios problemas. Não é de hoje, inclusive, que se elogia o poder do audiovisual na remissão de meninos e meninas que vivem nos centros socioeducativos. Sem falar na capacidade que o jogo de imagens tem de apontar soluções. Diante da máquina de filmar, é preciso se colocar. E o que mais se ouve falar nessas horas é em recomeço.

Como ninguém é de ferro, não faltam alguns quitutes de bom humor. "Desde que cheguei aqui [na unidade] estou gorda e estou linda", brinca uma das internas no filme, rompendo o clima tenso da maioria das falas.

Para a pesquisadora da UFPR Araci Asineli da Luz – referência em políticas públicas voltadas para a infância e adolescência marginalizada – o projeto tem a grande qualidade de mostrar que se a palavra for dada a esses jovens, eles mesmos vão apontar a solução. "Não podemos reproduzir a idéia de que eles são apenas um problemas. São também uma saída", comenta Araci.

Há uma década, Araci Asineli da Luz e uma equipe da universidade participam do corpo de educadores da Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros, que abriga em Mandirituba cerca de 80 crianças e adolescentes em situação de risco social. São vítimas de abandono familiar e ex-moradores de rua, em sua maioria. O projeto é considerado modelo pela Unicef. Nos três dias de lançamentos de vídeo nas unidades, quatro garotos da chácara puseram a roupa de domingo, máquina fotográfica a tiracolo e assumiram seu lugar no público que lotou as salas do Educandário São Francisco, do Joana Richa e do Cense Fazenda Rio Grande.

Foram convidados "desses que dão gosto." Deles partiam muitos dos aplausos que colocaram a perigo a sisudez de presídio que ainda vigora nas unidades. Para os internos, a turma da chácara – em plena liberdade depois de uma nada mole vida – são a prova de que cada rap, cada vídeo e cada discurso funcionam como passaporte para o futuro – palavrinha mágica do projeto Luz, Câmara... Paz!

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