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Gavrilo Princip, estudante sérvio da Bósnia, é preso após matar o arquiduque Francisco Fernando | Wikipedia
Gavrilo Princip, estudante sérvio da Bósnia, é preso após matar o arquiduque Francisco Fernando| Foto: Wikipedia

Sistema de alianças teve peso no conflito

A força da obra de Chris­topher Clark, entretanto, não está num suposto recurso ao "presentismo", que o historiador rejeita explicitamente. Ao contrário, ele enfatiza justamente o fato de que, morto o arquiduque, a chamada Crise de Julho adquiriu uma dinâmica própria, na qual teve peso decisivo o intrincado e pouco coerente sistema de alianças europeu e, no seu interior, a teia de interesses econômicos, políticos e por vezes pessoais que detonaram a matança. Os Sonâmbulos focaliza em detalhe a história dos Bálcãs, fronteira de três impérios (Austro-húngaro, Russo e Turco Otomano), e mostra como essa região crítica para a Europa tornou-se, já no fim do século 19, um barril de pólvora: a turbulência balcânica, assegura Clark, "forneceu a estrutura conceitual dentro da qual a crise, uma vez surgida, foi interpretada". Voltando à analogia entre passado e presente, a desterritorialização da gestão de crises, hoje tornada possível por um sistema de governança global ainda incipiente, atua como freio contra colapsos incontroláveis como o de 1914, precipitado, segundo o britânico, por "rápidas interações entre centros de poder autônomos e pesadamente armados que confrontavam ameaças diferentes e cambiantes, e que operavam em condições de alto risco e baixa confiança e transparência".

Em vez de se concentrar na Crise de Julho, O Horror da Guerra, do britânico Niall Ferguson (publicado em 1998 e com edição brasileira em abril deste ano), é um opulento ensaio de 736 páginas em torno de 10 perguntas clássicas sobre a I Guerra. Algumas, como "A guerra foi recebida com entusiasmo popular?", já foram exaustivamente respondidas. "Houve manifestações isoladas de entusiasmo chauvinista pela luta iminente, mas foram exceções", afirma Clark. Outras, como "A propaganda, e especialmente a imprensa, mantiveram a guerra em curso, como acreditava Karl Kraus?", só se justificam em função da admiração de Ferguson por Kraus. A pergunta fundamental do livro é a que permite ao autor exercitar sua veia polêmica, especialmente contra a visão estabelecida sobre a guerra entre historiadores britânicos: "A guerra era inevitável, seja por causa do militarismo, do imperialismo, da diplomacia secreta ou da corrida armamentista?". As conclusões de Ferguson (em 1914, os europeus estavam dando as costas ao militarismo e abraçando a democracia, e a grande falha da Grã-Bretanha foi ter se omitido do ponto de vista político e militar em relação a esse fenômeno) são largamente baseadas em dados sobre a França e a Alemanha, evitando as águas profundas da Rússia e da Áustria-Hungria.

  • Soldado francês rodeado por uma montanha de cápsulas deflagradas
  • Combatentes franceses enfrentam tropas alemãs em Champagner (França)
  • Tropas austríacas se preparam para executar prisioneiros sérvios

Lenço umedecido, zíper, horário de verão. Banco de sangue, tabagismo, "corredor polonês". Aço inoxidável, saquinho de chá, comunicação por rádio a bordo de aeronaves. Genocídio, bombardeio aéreo, tanque de guerra. Nenhuma dessas expressões fazia sentido antes da I Guerra Mundial, e se hoje nos parecem familiares é porque "é impossível entender o Breve Século 20 sem ela", como escreveu o historiador britânico Eric Hobsbawm. Ou porque foi "a primeira calamidade do século 20, a calamidade da qual brotaram todas as outras", no balanço mais explícito de outro historiador, o americano Fritz Stern.

A Grande Guerra, como batizada inicialmente pelos contemporâneos (a expressão "I Guerra Mundial" surgiu apenas ao fim do conflito, quando ficou claro que seus horrores seriam reprisados), foi o apocalipse realmente existente para a civilização europeia. Antes dela, longas aventuras militares pareciam definitivamente confinadas ao Sudão ou à China. Depois, a linha de frente alcançou centros urbanos como Estrasburgo, Varsóvia e Salônica, onde havia cafés, automóveis e orquestras sinfônicas. A guerra mobilizou 65 milhões de homens, demoliu quatro impérios e deixou 20 milhões de mortos entre militares e civis. Ao fim de quatro anos, seis em cada 10 homens sérvios tinham perecido. Numa escala menor, um em cada quatro graduandos de Oxford e Cambridge, destinados desde o berço ao parlamento ou ao serviço colonial, foi parar nos cemitérios militares britânicos. Em pelo menos uma dimensão a profecia do presidente americano Woodrow Wilson, de que aquela seria "uma guerra para acabar com todas as guerras", se realizou: os que nela combateram tornaram-se firmes partidários da paz. Entre as exceções conta-se Adolf Hitler.

O filósofo Karl Popper disse que o futuro não seria o que é se fosse possível conhecê-lo. Com a I Guerra, ocorre um fenômeno curioso: quanto mais a conhecemos, menos ela se parece com o que é, ou seja, um acontecimento que irrompeu há um século. O historiador britânico Christopher Clark, autor do elogiado Os Sonâmbulos – Como Eclodiu a Primeira Guerra Mundial, tem uma explicação que pareceria surpreendente: "se o debate é antigo, o tema ainda é atual. Na verdade, é ainda mais atual e mais relevante agora do que 20 ou 30 anos atrás. As mudanças no mundo alteraram nossa perspectiva sobre os acontecimentos de 1914". É impossível não se impressionar com a seguinte descrição da crise que levou à guerra e do papel nela desempenhado pelo grupo terrorista sérvio Mão Negra, do qual fazia parte Gavrilo Príncip, jovem estudante que matou a tiros o arquiduque austríaco Francisco Ferdinando: "o processo começou com um esquadrão de homens-bomba suicidas e um cortejo de automóveis. Por trás do ultraje de Sarajevo estava uma organização declaradamente terrorista com um culto de sacrifício, morte e vingança; mas essa organização era extraterritorial, sem uma localização geográfica ou política clara; estava dispersa em células que transpunham fronteiras políticas, não tinha como ser chamada à responsabilidade, suas ligações com qualquer governo soberano eram indiretas, ocultas e certamente dificílimas de discernir fora da organização".

Autor avalia os efeitos da guerra na América Latina

O livro de Niall Ferguson tem o subtítulo Uma Provocativa Análise da I Guerra Mundial. Mas é O Adeus à Europa – A América Latina e a Grande Guerra, do francês Olivier Compagnon, o verdadeiro merecedor desse rótulo. Deixando de lado o mito conveniente de que a I Guerra foi um conflito europeu, ele muda o foco para seus efeitos na América Latina, a partir da dissecação da forma como a guerra foi vivida por Brasil e Argentina.

Um dos alvos de Compagnon, especialista em história latino-americana, é a velha assertiva de que o período de 1889 a 1929 foi marcado, no subcontinente, pelo expansionismo americano (a política do "Grande Porrete" de Theodore Roosevelt), pela crise do modelo liberal-oligárquico e pelo crescimento das classes médias urbanas. O resultado é a instigante ideia, traduzida no título da obra, de que a guerra marcou o fim do idílio europeu das elites brasileiras e argentinas e permitiu o florescimento de um modernismo político e cultural que Compagnon relaciona à ascensão de correntes como o varguismo e o peronismo.

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