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Os cadernos estão encapados com papel-tigre, a turma é do ciclo básico, a professorinha usa avental branco e o tema da redação é "Uma história de Páscoa". Mas os alunos não brincam mais de "pega-pega" no recreio. São 38 homens feitos, brigando com as palavras que teimam em fugir do papel depois de décadas longe dos bancos escolares. Eles fazem parte da Colônia Penal, uma espécie de zona livre em meio à imensidão do Complexo de Piraquara, e estudam na sala de 1.ª a 4.ª do Centro de Educação Especial de Jovens e Adultos (Ceebja) Mário Faraco.

Dizem que toda aquela beleza enjaulada às margens da Represa do Iraí – onde está a colônia – é do tamanho do Boqueirão. Mas fica a impressão de que a floresta de pinheiros, o campo de futebol e o próprio Iraí importam menos que as pequenas salas de aula – cinzentas, abafadas e disputadas. Em torno delas corre um "conversê" digno de colegiais em dias de gincana. Seria perfeito se não fosse um bocado trágico: com o cotovelo na carteira tem gente pelejando atrás de uma boa lembrança de Páscoa. E não vem porque talvez não exista.

Há quem não lamente o infortúnio do cárcere. Para Claudinei dos Santos, estar na colônia, em dias de sair, e freqüentando a escola, parece mentira. Em 2005, quando entrou na PCE, condenado por furto qualificado, se viu "no fundo do poço", como diz. Era a pior seqüência de uma história de abandono dos estudos aos 7 anos, trabalho forçado, pobreza doída, até chegar ao vício e à marginalidade. "Quando conheci o dinheiro, aí virou tudo", conta, com a redação de Páscoa na mão e uma idéia na cabeça: precisa aprender é matemática, para melhorar seu passe como pedreiro. As letras devem ficar para depois. Uma pena.

A preocupação de Claudinei com a utilidade dos estudos é típica. E explica por que os detentos costumam ser melhores alunos do que a média da Educação de Jovens e Adultos (EJA) – como garante a professora Beatriz (como preferiu se identificar), do alto de 14 anos de EJA e cinco meses de colônia. "Eles estão focados." Ter um trabalho para quando chegar a liberdade é um imperativo. O estudo funciona como passaporte para chegar lá. Até que se prove o contrário, esse desejo de aprender só esmorece porque a rede de proteção para quem sai é falha. Sem emprego e sem apoio, quem é que consegue estudar?

"E sem estudo, como é que vou pegar trabalho?", pergunta Romildo Alves, 33 anos, vida escolar abandonada na 3.ª série. "Tive de voltar de ré. E pensar que eu tinha entusiasmo pela escola quando era guri", diz o rapaz que estuda dois períodos no Ceebja, para ver se engata uma primeira e sai de arranque. Altamir dos Santos, 45 anos, ex-aluno do Colégio Estadual Pedro Macedo, idem. Mas tem dúvida. É soldador de ofício, deve sair em três meses e acha que não vai conseguir continuar os estudos. Tem de trabalhar, diz, repetindo o mantra que acompanha os presos assombrados pela ressocialização. É a prova de fogo.

Inclusive para presos "que arrancaram", como Devanir Rocha, 31 anos, 20 de abandono escolar. Detido desde 2004, deu tantos saltos na EJA que pensou em abandonar a antiga profissão – motoboy. Quer estudar para repórter. "Será que vai dar?" O rapaz gosta das aulas de História da professora Solange Falcone e se tornou leitor da coleção Vagalume, uma paixão nacional. "Vai ser uma lástima se eu parar. Estou lendo melhor."

Não só ele. Há 20 passos da sala onde Devanir estuda está uma pequena sala com 3 mil livros. O bibliotecário é "D", 39 anos, advogado e a seis meses de realizar seu sonho de liberdade. Arrisca ninguém saber mais do que ele sobre as práticas de leitura na colônia."São 250 visitas mensais para 1,3 mil presos", calcula.

Nem sempre pode atender os pedidos, como o do sujeito que gritou da porta: "Tem Sidney Sheldon?" Não – nem Sidney nem Paulo Coelho, para tristeza geral. Em compensação, tem Platão e Aristóteles, algumas obras de Psicologia, entre outras papas finas. "F", 22 anos, ex-aluno de História e de Ciências Sociais da UEL leva A Náusea, de Sartre, e Utopia, de Thomas Morus, "para reler". "Ajuda a lidar com a depressão, a reorganizar as idéias. Até quem não gosta acaba lendo", sentencia. No que é apoiado por "D": ele lê até oito livros por mês, cem por ano e dá uma mãozinha para a turma do Ceebja na hora de vasculhar a estante. "Tem Montesquieu?", pergunta um à queima-roupa. Isso é incrível. Corre para a estante. Dessa vez, tem sim.

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