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Muito já se falou sobre a vinda da família real portuguesa ao Brasil, há 200 anos. Cidades como Salvador e Rio de Janeiro são o foco principal do enredo da época, afinal tudo aconteceu por aquelas bandas. E o resto do país, era como se não existisse? É verdade que o Paraná, em 1808, era um território coberto por densas florestas, escassamente povoado e habitado por índios isolados, conforme explica o jornalista e pesquisador Laurentino Gomes, autor do livro 1808, Como uma Rainha Louca, um Príncipe Medroso e uma Corte Corrupta Enganaram Napoleão e Mudaram a História de Portugal e do Brasil.

Ele lembra que o viajante inglês John Mawe, que passou por Curitiba um pouco antes da chegada de D. João, deixou registrado que os poucos habitantes da agora capital paranaense se dedicavam à atividade pastoril, cuja produção de bois e mulas se destinava a abastecer os mercados de São Paulo e Rio de Janeiro. Mawe descreve que Curitiba era um vilarejo simples e que era perigoso avançar a oeste da cidade porque lá viviam os antropófagos. "Era, evidentemente, um exagero. Não há notícias de índios canibais no interior do Paraná nessa época. Mas é sintomático a respeito das lendas que havia no Brasil até a chegada da corte. Um lugar considerado misterioso e exótico", afirma Gomes.

Assim como São Paulo, há registros históricos de que o Paraná contribuiu para o abastecimento da corte, fornecendo gêneros alimentícios, cavalos e escravos. O historiador Alcyr Linharo, em As Tropas da Moderação, explica que nos 13 anos em que a família portuguesa permaneceu no Rio de Janeiro, a população da cidade quase duplicou e o número de escravos triplicou. Por causa disso, houve escassez de alimentos e as regiões vizinhas foram mobilizadas para produzir carne, cereais e outros alimentos e produtos. No livro Efemérides Paranaenses, do historiador David Carneiro, há a descrição de que em fevereiro de 1808, na Câmara de Curitiba e Paço do Conselho da Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, com a presença de juízes e oficiais, abrem uma carta do capitão general de São Paulo determinando que os povos fizessem remessa de gêneros para a então capital. O livro traz ainda relatos de que o ouvidor de Curitiba se manifestou sobre as festas religiosas, pois estas deveriam restringir-se à demonstração de liturgia, por estar a corte lusitana de luto em conseqüência de se achar dominada pelos franceses em solo português.

O impacto no Judiciário

O jornalista Laurentino Gomes proferiu palestra sobre o impacto da família real na Justiça brasileira, em Curitiba, na última segunda-feira. Ele lembra que até a chegada da corte, existia apenas um sistema de justiça em funcionamento na colônia, mas os juízes respondiam às instituições instaladas em Portugal. "A justiça portuguesa, herdeira do Direito Romano, previa um processo de julgamento relativamente justo, com direito de defesa do réu e advogados que o representavam perante o tribunal. Mas isso era mais teórico do que prático", diz Gomes. Nas regiões remotas do interior do Brasil, a justiça era exercida pelos chefes locais, que muita vezes ditavam a sentença de acordo com as suas conveniências pessoais.

Mesmo que a justiça emanasse do rei naquela época, é interessante notar que raramente ele intervinha nas decisões. A Real Casa de Suplicação, primeiro órgão judicial criado no Brasil com a chegada da corte lusitana, equivalente hoje ao Supremo Tribunal Federal, julgava questões de terra, família e escravos. "As pessoas desconhecem que a escravidão era regida por lei. Os donos dos escravos tinham a obrigação legal de zelar por eles. Então o escravo que se julgasse injustiçado, poderia recorrer à justiça", comenta Gomes. Mas isso, na prática, só funcionava no Rio de Janeiro. No interior, valia a lei da selva e do mais forte.

O jornalista evita conjecturas sobre a história, mas fala de como seria o Brasil caso a família real não tivesse vindo para cá. "A República viria muito mais cedo, porém o país teria se fragmentado em três ou quatro repúblicas menores, como aconteceu com a América Espanhola. Provavelmente, seríamos mais uma das muitas republiquetas que surgiram no continente nesse período. Ou seja, não seríamos nem muito melhores nem muito piores do que fomos com a monarquia. Mas seríamos diferente."

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