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São Paulo – Quando o assunto à mesa é ética, o jurista Dalmo de Abreu Dallari quebra seu sigilo pessoal em dois tempos. Recém-chegado da França, onde passou três meses ministrando palestras como coordenador da Cátedra Unesco de Educação pela Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, ele se mostra intolerante com quem desmerece o outro e cai na tentação do egoísmo essencial. Intolerante talvez não seja a palavra. Crítico veste melhor esse paulista de Serra Negra, filho de imigrantes italianos, que fez madureza e teve a ousadia como ele diz, de chegar a diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pela sua intimidade com os integrantes do PT, muitos o juram filiado do partido. Mas Dallari nunca aceitou o convite, pela crença de que seria melhor não se vincular se quisesse manter a independência. Numa semana de trocas de ministros, relatório de CPI, rechaço ao samba da pizza e hosana ao caseiro, ele aponta os vácuos éticos do governo, sem poupar o eleitor e sua moral flutuante. "Não existe isso de uma ética para o cidadão e outra para o indivíduo", diz. "A ética é universal."

Há 26 anos, o senhor se recusou a ser um dos fundadores do PT dizendo que preferia não entrar no partido para não ter de sair dele. Se tivesse se filiado, já estaria fora?

Dalmo de Abreu Dallari – Muito provavelmente. Já há alguns anos verifico desvios, com o partido se afastando dos seus objetivos programáticos, dos seus princípios básicos, da sua base popular. Nunca vi um partido com tamanho alicerce na população, uma base sólida, entusiasmada, otimista. O PT a abandonou completamente, passou a utilizar os mecanismos tradicionais de poder, como as elites tradicionais.

Qual foi o parafuso que espanou?

As pessoas se deslumbraram com a situação de poder. Um grande historiador e político inglês, Lord Acton, criou uma frase clássica nesse sentido: o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Alguns afirmam que Acton pretendia dizer que o poder tende a corromper. Se as pessoas forem muito resistentes, não entram no jogo. De fato, existem partidários do PT que tiveram a oportunidade de ser cooptados pelo esquema e se recusaram.

Há algum partido que represente a vontade do povo?

Um autor importante do século 18, David Hume, grande cientista político, classificou os partidos em três espécies. Há aqueles de princípios, que se constituem em função dos lemas que querem defender. A segunda espécie são partidos de interesses, que se organizam pensando em determinados objetivos. Pode ser um partido agrário, um partido de aposentados, como esse de Israel. O terceiro ele chama de partido de afeição, que engloba organizações devotadas a um líder. As pessoas mal sabem o que essa figura pensa, mas são fascinadas por ela e a acompanham. É típico do populismo. Hume lembra que são raros os que orientam sua vida por princípios. O que pesa são os interesses. E, por isso, os partidos, mesmo quando se dizem de princípios, acabam na prática sendo do segundo tipo. São sempre instrumento de proteção e promoção de determinados interesses. Não são universais.

O PT está mais para um grupo de interesse ou de afeição?

Para o de interesse. No original, ele visava ao direito dos trabalhadores, à correção das injustiças sociais, aos canais de igualdade social. O fato de ser de interesse não significa uma coisa negativa. Em relação a Lula, ele é um componente importante do PT, um elemento de afeição que para muita gente, se tornou decisivo. Há petistas que estão lá porque o reconhecem como um grande líder. Mas não são a maioria.

Podem surgir desvios éticos para atingir o interesse?

Sim, o que é extremamente perigoso. Às vezes, a utilização de um caminho inadequado ou não previsto na legislação acaba se desviando da ética. É o caso do uso da violência para corrigir injustiças sociais. Ou então do terrorismo, um meio absolutamente inadequado. A quebra de sigilo sem autorização judicial, que ocorreu nesse episódio com o caseiro Francenildo Costa, também se encaixa aqui. Aparentemente ajudaria para o interesse, mas só aparentemente. O meio tem de ser compatível com o fim. Ninguém vai escolher um meio antiético para atingir um fim ético. É uma contradição.

O fato respingou na possível candidatura de Lula à Presidência?

Pelas últimas informações, não. Rigorosamente, Lula não tem nada a ver com isso. Na posse de Guido Mantega, ao chamar Palocci de grande irmão, Lula não fez elogio por erros cometidos. É preciso não esquecer que os dois, antes de personalidades políticas, são amigos há muitos anos.

Qual é a razão da indiferença ou tolerância dos brasileiros em relação às atitudes antiéticas do governo?

A indiferença vem também, entre outras coisas, do egoísmo essencial. As pessoas não querem perder tempo trabalhando pela sociedade, cada um quer seu conforto, não admite deixar de ir à praia para discutir um assunto de grande interesse da sociedade. Outros conhecem a fragilidade de certas promessas e não se sentem traídos quando elas não são cumpridas. Quando o político que assinou um papel dizendo que não sairia do cargo até o fim do mandato sai antes, não é cobrado por isso. Essa decisão não influi sobre o eleitorado. Quando se fala em Legislativo, a apatia é ainda maior. Na tradição brasileira, sempre se disse que a escolha de parlamentares não tem importância. É um erro gravíssimo. Nossa Constituição, das mais avançadas do mundo, diz logo no Artigo 1.º que a democracia brasileira é, ao mesmo tempo, representativa e direta. Portanto, o povo deveria se preparar melhor para essa participação, ou direta ou escolhendo representantes. Mas não o faz. Na última turma para quem eu lecionei na Faculdade de Direito, perguntei quem se sentia representado pelos então deputados federais. Só um aluno levantou a mão: o pai dele era deputado. É um aspecto importante grave, da nossa democracia. É preciso ter mais cuidado e deixar de fazer do jogo eleitoral um balcão de negócios.

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