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O homem pode matar em nome da ciência? Este questionamento persegue a humanidade desde pelo menos o ano 500 a.C., quando pela primeira vez Hipócrates relacionou aspectos de órgãos humanos doentes com o de animais para fins didáticos. No fim da Idade Média, o racionalismo de René Descartes (1596-1650) tornaria método padrão na medicina o uso de animais em experiências. Mais recentemente, ativistas passaram a lutar pelos direitos dos bichos. O tema ganhou um viés ético além do técnico, filosófico e não só científico. Já faz algum tempo a discussão ganhou as salas de aula das universidades.

Há pouco mais de um mês o setor de ciências biológicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR) suspendeu uma pesquisa em seis cães por causa das pressões. Não foi o primeiro caso no Brasil, nem será o último se depender dos ativistas. Autor do livro "Direito dos Animais" (Editora Mantiqueira), o promotor de Justiça Laerte Fernando Levai diz que o uso de bichos para fins pedagógicos é antes de tudo um crime. Eles são submetidos a cortes, injeção de substâncias, queimaduras, indução de fome e estresse para que seus organismos sejam estudados em busca de uma cura para doenças humanas. Para ele, a prática pode ser enquadrada como crime federal.

A utilização de animais está proibida desde 1979 no ensino secundário. Já as universidades estariam contrariando a Lei de Crimes Ambientais (9.605/98), cujo artigo 32 considera crime "praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". Levai recorre ao primeiro parágrafo da lei: incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. O segundo alerta que "a pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal".

Levai interpreta o uso do animal para fins de pesquisa como um erro metodológico por considerá-lo o único caminho ao conhecimento científico. Isso inclui a vivissecção, procedimento cirúrgico realizado em bichos vivos. Para o promotor, esse erro metodológico nasceu com Descartes e foi consolidado pelo fisiologista francês Claude Bernard (1813-1878), autor das bases da moderna experimentação animal. Levai analisa a questão mais pelo viés filosófico do que científico, já que as doenças humanas continuam existindo, algumas com índices cada vez maiores, apesar dos milhões de animais já sacrificados em busca da cura.

A questão é também mais ética do que técnica, segundo o biólogo Thales Tréz, professor da Universidade Federal de Alfenas (MG). Thales vê uma resistência dos professores em buscar alternativas que substituam os animais. Ele coordena a Interniche Brasil, rede internacional dedicada a defender os bichos, e já encontrou 16 estudos científicos de várias partes do mundo comprovando um desempenho igual ou comparável entre métodos alternativos e o uso de animais, além de outros 12 indicando que as alternativas são mais eficientes. Apenas um estudo diz o contrário. De forma geral, esses métodos são softwares e laboratórios virtuais empregados na área de anatomia, fisiologia e farmacologia.

A mudança para métodos alternativos requer a discussão dos valores éticos e morais que estão por trás do problema. Os envolvidos devem primeiro refletir sobre "por que" mudar e em seguida "como" mudar. "Os métodos estão disponíveis, mas nem todos querem ou estão preparados para aceitá-los", observa Thales. A discussão já ganha corpo em muitas universidades. Na PUC-PR, por exemplo, todo procedimento com animais tem de passar pela aprovação do Núcleo de Bioética, subdividido em dois comitês, um deles para pesquisas com seres humanos e outro no uso de animais no ensino e na pesquisa.

Na falta de uma regulamentação clara, a PUC segue sua carta de princípios que visa reduzir o número de animais usados e o sofrimento deles. O coordenador do núcleo, o teólogo Mário Antônio Sanches, diz que quando possível o animal é substituído por um modelo artificial, mecânico ou tecnológico. Cada animal utilizado deve ter uma justificativa científica, que será avaliada pelo comitê.

A UFPR também criou comitês de ética. O Setor de Ciências Biológicas (SBC) já utiliza videoaulas, simulação por softwares de ensino e estudos de casos clínicos em substituição às aulas práticas tradicionais. Os animais são mantidos apenas nos cursos onde essas alternativas não estão disponíveis ou a manipulação faz parte de habilidade prática aos alunos. "Neste caso, são usados anestésicos e tomados os devidos cuidados para evitar ao máximo o sofrimento do animal", explica a professora-doutora Ana Maria Filadelfi, coordenadora do Comitê de Ética em Experimentação animal do SCB.

Ao final da aula prática em muitos dos casos não há necessidade do sacrifício dos animais, informam os professores-doutores José Marcelo Rocha Aranha e Luiz Cláudio Fernandes, respectivamente diretor e coordenador do biotério do SCB da universidade. O biotério cria espécies como o rato, camundongo, hamster, coelho e cobaia, a maioria destinada à pesquisa.

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