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Daniel Tiê é dessa classe de gente presente em todo lugar, mas inaparente aos olhos dos passantes. Está convenientemente detrás do espelho que oculta a indisfarçável ojeriza à gente de história rasa. Um povo multiplicado feito as ratazanas nos esgotos, transformado em estatísticas que sustentam outras estatísticas tão somente para dimensionar a miséria humana. Uma multidão invisível porque não se enquadra nos padrões de vida das classes superiores. Pessoas humilhadas porque são feias, não têm dinheiro, não têm cultura, não têm posição social.

Essa gente é o combustível do proselitismo político, da desfaçatez humana. Alguns poucos se condoem, raros os entendem, menos ainda lhes dão voz. Sua presença desperta suspeita, até repulsa. Jogamo-los para qualquer lugar em que não os queiramos ver apenas porque nos causa náuseas vê-los antes do almoço. Cadáveres insepultos atrapalhando o trânsito, obstruindo calçadas. Uma legião de gente presa num vácuo obscuro entre o ser e o existir, largada à própria sorte num campo da existência onde não há sorte.

Se são tantos, por que permanecem invisíveis? Talvez porque não estejamos preparados para ver a miséria humana neles retratada. Ou seria pela indisfarçável repulsa àquela que se imagina uma gente de história curta e insossa? Ou porque a miséria não dá audiência? Às vezes vamos tão longe atrás das notícias de uma guerra, quando outra mais estarrecedora acontece do nosso lado. São histórias que acabam no túmulo da indiferença.

Isso acontece talvez porque seja mais fácil enxergarmos tão somente o que está à nossa vista. Talvez porque, de certo modo, ainda estejamos vivendo em cavernas. Desde sempre o homem reluta a sair do antro da ignorância. Todos ali nascem, a maioria ali morre. Dois mil anos antes de Cristo, Platão recorreu ao Mito da Caverna para mostrar como se pode ascender ao mundo inteligível. Nessa alegoria, relata a existência de homens prisioneiros desde o nascimento no interior de uma gruta obscura, atados de maneira que tinham de olhar sempre para frente, sem nunca poder girar a cabeça.

Entre eles e o fogo que iluminava o antro passavam todo tipo de figuras, umas em forma humana, outras em forma animal. Os cativos não viam nada mais do que as sombras projetadas pelo fogo – como uma tela de cinema na qual transitam sombras – e chegavam a crer, carentes de uma educação diferente, que aquilo que viam era a própria realidade. Tomados pela obnubilação dos sentidos e a ofuscação mental, tornam-se condenados a tomar por verdadeiras todas e cada uma das coisas falsas. Se um deles saísse ao mundo exterior, se acostumaria a ver os objetos como realmente são.

Tão antigo quanto real, o mito se adapta com folga à atualidade. Nosso comportamento não está distante dos cativos do filósofo grego. A caverna somos nós mesmos, e os gritos ensurdecedores que vêm das ruas são a realidade que parece não nos atingir. Aquele de nós que contemplar o sol – a idéia do conhecimento pleno, na visão platônica – ver-se-á incapaz de se readaptar às trevas da caverna. Falta-nos, portanto, a iniciativa de enxergar para além de nós mesmos. (MK)

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