• Carregando...
O paraibano “Nestor” e o feijão de corda: abastecendo os conterrâneos | Henry Milleo/Gazeta do Povo
O paraibano “Nestor” e o feijão de corda: abastecendo os conterrâneos| Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo

Diário de Bordo

Conheça algumas curiosidades sobre os nordestinos curitibanos:

Eles vivem de aluguel: Nos seis núcleos nordestinos mapeados pela reportagem a maior reclamação é o preço dos aluguéis pagos na periferia, na faixa de R$ 500, o que exige morar muita gente na mesma casa para dividir as despesas. Detalhe: as moradias nordestinas, mesmo populosas, são "um brinco".

Em qual Curitiba? Mesmo com ônibus a R$ 1, aos domingos, os nordestinos recém-chegados não saem das vilas para passear. Raro um que conheça o Jardim Botânico ou o Passeio Público. De acordo com a assistente social Elizete Sant’Anna, da Pastoral do Migrante, a falta de dinheiro para consumir, mesmo que seja um lanche simples, inibe a mobilidade e as trocas urbanas.

Copa nordestina: O pouco lazer, quando há, atende pelo nome de futebol. Na CIC, são comuns as peladas entre pernambucanos e paraibanos. Em junho e julho, promovem festas juninas, das quais falam com entusiasmo juvenil: "eita".

Mulher não pode: Costumes sertanejos são seguidos à risca e boa parte das mulheres não trabalha fora, mesmo com a família em dificuldade. A baixa instrução, comum a homens e mulheres, tem de ser colocada na conta. Muitos afirmaram à reportagem não saber ler e escrever.

À mercê da periferia: Numa das vilas alagoanas do Tatuquara, a Gazeta foi recebida com portas fechadas pelos moradores. Há medo dos traficantes da região. (JCF)

  • Leda da Silva: buchada no Osternack
  • Carlito Souza e as filhas na
  • O baiano Damasceno: sabadão com pinga na CIC
  • Damião com a mulher Sirleia Pântano: Alagoas é aqui

Os curitibanos "das antigas" costumam dizer que, a cada inverno, a rodoviária fica abarrotada de forasteiros, batendo o queixo, contando as horas para fugir em direção do sol. O frio, afirmam, impede que nascidos nas terras quentes adotem a capital como sua cidade. A depender dos últimos dados do IBGE, contudo, a velha-guarda vai ter de rever seus conceitos.

Nordestinos são míseros 1% das migrações para a capital paranaense, mas tendem a ficar por aqui, adocicando o sotaque e trazendo temperos fortes à culinária local. Somam hoje 28.935 pessoas, o equivalente a um Bacacheri inteiro. Apesar do crescimento negativo das migrações na última década, – 4,6%, a média de permanência é de dez anos, tempo suficiente para ter filhos, casa própria e juntar dinheiro para passear vez em quando no estado natal.

Resta saber quem mudou – se foram os termômetros ou os forasteiros. A contar pelas temperaturas dos últimos dias, Curitiba permanece imbatível no posto de "a fria". Quanto aos viajantes, tudo indica que desafiam a lenda de que o Nordeste não se enamora do Sul. Fatores como trabalho, transporte e formação de pequenas comunidades nas periferias fazem com que se sintam em casa. Ou quase.

A Gazeta do Povo conversou com seis grupos de migrantes – baianos, pernambucanos, cearenses, paraibanos, alagoanos e piauienses. Todos os retirantes entrevistados narraram os horrores da chegada, como se tivessem acordado, por engano, num freezer de açougue. "Pedia a Deus que amanhecesse para saber se eu estava viva", lembra Geni Batista, 33 anos. Como todos os outros, teve vontade de dar meia volta, volver, mas contou com o apoio de cinco irmãos. Conversa com eles todos os dias: basta atravessar a rua para se sentir na minúscula Águas Belas.

"Venha conhecer Maris­valda", convida Geni. "Vamos à casa de Lenilda logo ali", convoca Marisvalda, 39 anos, dando uma amostra das relações de parentesco que movem a "vila de pernambucanos", um encrave na Vila Sandra, CIC – bairro que concentra 2,8 mil nordestinos, atrás apenas do Sítio Cercado, com 2,9 mil. Numa e noutra região da cidade o modelo se repete, com pequenas variações, a contar dos índices de pobreza. Há, por exemplo, 1.556 nordestinos na fila da Cohab (2% do total) à espera de sair das favelas. Curitiba, para eles, é ainda uma promessa. "Muitos querem ir embora. Mas as notícias da seca os segura", diz um potiguar, bem-sucedido, que não disse seu nome.

Embora o Censo 2010 apon­te 120 cearenses no Alto da XV e índices semelhantes em bairros como o Bigorrilho, os nordestinos, grosso modo, moram longe, ganham mal e estudaram pouco. Só não são engolidos pela cidade porque formam grupos nas­­cidos de fortes laços de parentesco e afinidades municipais. No Tatuquara, por exemplo, há dois núcleos de alagoanos: um com gente de Palestina; o outro com gente de Arapiraca e Palmeira dos Índios. Não adianta lhes dizer que são conterrâneos de Hermeto Pascoal e Graciliano Ramos. Não sabem de quem se trata.

Sem segredos

A dinâmica da rota Nor­deste-Sul não tem segredos. Alguém viaja, arruma emprego, conta ao patrão que tem um irmão bom de serviço e o ampara na mesma firma. Um efeito curioso dessa agência informal é que se tornou comum identificar nascidos na mesma região atuando no mesmo ramo: pernambucanos entregam pizzas; alagoanos puxam carrinhos na Ceasa; baianos são braços da construção civil; paraibanos vendem badulaques na rua.

Há quem vença? "Ô, xente, só os que têm cabeça", brinca Manoel Felipe, 46 anos, conhecido como Nestor, dono do Paraíba’s Bar, no Sítio Cercado, alistando-se entre os que têm cabeça. Ele vingou viajando para o Nordeste atrás de iguarias da terra: a cada empreitada traz feijão de corda, rapadura, queijo de coalho, massa de cuscuz e, claro, "pinga de lata", resolvendo o maior problema dos nordestinos depois das baixas temperaturas – o paladar.

Parte do problema é resol­vido às segundas-feiras, a partir das 19 horas, na Lanchonete do Moraes, no Osternack. É preciso chegar cedo para comer a buchada de bode feita pela piauiense Leda da Silva. Tem forró, falação, muita risada – só falta mesmo uma parte do pessoal se sacudir um pouco mais. Ficam nas mesas do canto, só no cochicho. São curitibanos. Muitos atravessam a cidade para provar o cardápio da Leda. Alguns ainda têm medo da buchada. Mas é só uma questão de tempo – quem provou, garante.

Velha vila polonesa da CIC muda de perfil

Desista de imitar os atores da novela Gabriela, da Rede Globo. O melhor lugar para aprender o legítimo sotaque de Jorge Amado é a "Rua dos Baianos", oficialmente Rua Júlio Voss, no Jardim Gabineto, divisa da CIC com o Órleans. São ao todo 20 famílias vizinhas, muitas delas paranaenses há bastante tempo, como a do vigilante Carlito Souza, 46 anos. "No passado, moramos no Norte do Paraná e chegamos aqui por causa da geada", conta Carlito, no que é seguido pelo cearense Antônio Monteiro Sobrinho, 64 anos, o Toninho Ceará, líder do segundo maior clã nordestino da vila.

Originariamente, o Ga­bineto era um entreposto de poloneses, cujos nomes batizam quase todas as ruas. Deveriam reservar alguma para os novos moradores. Ao todo, são 3,9 mil cearenses na capital, mas naquela vila eles formam uma associação modelo, que serve de inspiração a outros núcleos de migração, inclusive dos onipresentes baianos, com 9 mil pessoas dispersas por toda Curitiba. É fácil identificá-los: formam pequenas nações.

Na Vila Augusta B, também na CIC, vivem 310 famílias – cerca de 200 vieram da Bahia. "São unidos qual o quê", elogia a gaúcha Solange do Nascimento, em dúvida sobre o estado onde de fato vive. A depender do vizinho José Paulo Damasceno, 35 anos, ela está em Irecê, no sertão, ao sabor de catuabas e nós de cachorros, pingas de sucesso nos sabadões promovidos no bar de Damasceno.

"Os professores diziam que a gente não sabia falar... O ‘é’ aqui é ‘ê’, sô", lembra o comerciante, ao tratar das diferenças culturais com as quais se deparou ao chegar ainda guri. Agora não se aflige mais. Ele bem poderia dar uma sossegada na turma da Vila Palmeira, no Tatuquara, onde os alagoanos não param de desembarcar. "Ali em cima é a Vila Risca Faca", debocha o microempresário Damião dos Anjos Andrade, 38 anos, o Fininho, alagoano de Palestina, sobre a vilinha recém-nascida, ali em riba.

Damião veio jovem e ganhou a vida. Hoje é dono da Mercearia Fome Zero, com clientela garantida. "Tem 2 mil das Alagoas só por aqui", superfatura. Bem, pelo menos 20 deles vieram semana passada, trazidos por ele, com emprego certo na Ceasa. Não sabe quantos vão vingar, apesar de haver bons motivos para permanecer. Os salários que por lá patinam em R$ 150 ao mês aqui beiram os R$ 1,2 mil. "E o povo de Curitiba é bom", garante, contrariando quem reclame falta de calor humano nessas terras frias. (JCF)

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]