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Vista do hospital de Lindoeste. Na cidade paranaense, cenário é típico: médicos precisam vir de cidades vizinhas | Fotos: Cesar Machado / Agrostock
Vista do hospital de Lindoeste. Na cidade paranaense, cenário é típico: médicos precisam vir de cidades vizinhas| Foto: Fotos: Cesar Machado / Agrostock

Ponto de vista

Culto à especialização afasta profissionais da clínica geral

A busca precoce pela especialização durante a trajetória acadêmica afasta os médicos brasileiros do atendimento clínico geral. Por consequência, diminui a ida de profissionais para o interior. A avaliação é do professor de Saúde da Família da UFPR, Francisco Carlos de Oliveira. "É o mito da competência do ultraespecialista", define.

Oliveira afirma que ao longo das últimas décadas os cursos de Medicina sofreram muita influência do mercado, deixando de lado a formação de generalistas. "Tem profissional que se especializa tanto que acaba desempregado."

O professor, que trabalha há 22 anos como médico concursado da prefeitura de Curitiba, diz que se solidariza com o esforço de prefeitos do interior, mas que a estratégia de oferecer altos salários pode ser um equívoco. "A prefeitura paga dois meses de salário e depois falta dinheiro para continuar pagando."

A longo prazo, Oliveira prevê que a atração de estrangeiros não vá resolver o problema das cidades pequenas. "Pode vir cubano ou norueguês, não vai ser muito diferente."

Em trânsito

Confira diagnóstico da presença de médicos em nove cidades paranaenses. Falta de profissionais fere orçamentos municipais e castiga população

Barra do Jacaré – Dois médicos trabalham no único centro de saúde municipal e moram em Andirá, a 10 quilômetros do município. Cidade do Norte Pioneiro está entre as cadastradas no Mais Médicos, mas não recebeu confirmação de participação.

Conselheiro Mairinck – Cidade do Norte Pioneiro tem dois médicos para uma população de 3,6 mil habitantes. Um deles mora em Ibaiti e viaja diariamente 30 quilômetros para atender.

Corumbataí do Sul – Os quatro médicos contratados ganham em média R$ 20 mil. Investimento ultrapassa previsão legal na pasta de saúde. A cidade da Região Central tem 24 anos. Nesse período, apenas um profissional residiu na cidade. Foi embora quando o único hospital local fechou as portas, há dez anos.

Fernandes Pinheiro – Seis médicos trabalham na cidade, mas apenas um reside no município do Centro-Sul. O profissional residente, contudo, atende aos pacientes locais apenas uma vez por semana: é ortopedista e dá consultas em municípios vizinhos.

Jardim Olinda – Com 1.409 habitantes, é a menos populosa na lista de 74 municípios paranaense sem médicos. Não foi contemplada na primeira chamada do Mais Médicos.

Lindoeste – Cidade de 5.363 habitantes, no Oeste, gasta 10% da arrecadação mensal de R$ 900 mil com o pagamento de salários para médicos, que moram em municípios vizinhos.

Marquinho – Município de 4.983 habitantes, no Centro-Oeste, não tem médico residente desde que se emancipou de Cantagalo, em 1994. Uma das profissionais que atende no município é boliviana.

Rio Bonito do Iguaçu – Com 13.660 habitantes, no Centro-Oeste, é a mais populosa da lista do CRM-PR de cidades sem médicos residentes. Não participou da primeira fase do Mais Médicos.

Santa Lúcia – na Região Oeste, Tem um pronto-atendimento, dois postos de saúde e um centro da mulher. A prefeitura contratou sete médicos, residentes em Capitão Leônidas Marques e Cascavel. O plantonista dorme no alojamento da unidade.

  • O ginecologista Celso Cardoso: rota Cascavel - Lindoeste

Marquinho tem 19 anos e nunca conseguiu atrair um doutor – ou doutora. O caso pode parecer irrelevante, mas é exemplo de um cenário preocupante. Assim como Marquinho, no Centro-Oeste do Paraná, outras 73 cidades do estado, algo como uma a cada cinco do total de 399 municípios, não têm médicos residentes. Os dados são do Conselho Regional de Medicina (CRM-PR).

INFOGRÁFICO: Confira dados sobre as cidades do Paraná sem médicos residentes

Essas informações se referem apenas aos endereços dos profissionais inscritos no CRM-PR. Outra fonte, o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Brasil (CNES), aponta que, até julho, 34 cidades do Paraná não tinham vínculo com profissionais do SUS. Mesmo com possíveis falhas cadastrais, os dois bancos de dados comprovam a existência de um "apagão" de profissionais em pequenas cidades do interior.

A situação não é nova. Pesquisa feita em 2008 pela Gazeta do Povo, a partir das informações do CRM-PR, revelou que 89 municípios paranaenses não tinham médicos residentes. O CNES mostrava que 33 cidades não tinham profissionais do SUS.

Da lista atual de 74 municípios sem profissionais residentes, 49 (66%) se inscreveram na primeira chamada do Mais Médicos, iniciativa do governo federal para preencher mais de 15 mil vagas em unidades de saúde. Apenas quatro foram classificadas como prioritárias, devido à vulnerabilidade social. São elas Doutor Ulysses, Mercedes, Nova Laranjeiras e Tunas do Paraná.

Na semana passada, ao anunciar o acordo para trazer 4 mil médicos cubanos pelo programa, o Ministério da Saúde informou que a primeira leva desses estrangeiros vai ser destinada aos 701 municípios que não estiveram entre nenhuma das seis opções de cada um dos 1.618 profissionais inscritos na primeira chamada. Dessas cidades que passaram a ter preferência, cinco ficam no Paraná. Novamente Tunas aparece na lista.

"Só mesmo atraindo estrangeiros para a situação mudar", avalia Maria Accordi, secretária de Saúde de Marquinho. Na falta de profissionais que queiram morar na cidade de 4.983 habitantes, ela precisou importar dois clínicos gerais que residem em Laranjeiras do Sul, a 46 quilômetros. Uma delas é boliviana, com CRM brasileiro.

Medicina passa pela estrada de chão

Maria Gizele da Silva, da sucursal

Uma saída para que cidades afastadas tenham médicos é a viagem diária, o chamado "bate e volta", praticado por profissionais que trabalham em vários lugares. Não é raro terem de pousar em quartos improvisados de postos de saúde e hospitais.

Tunas do Paraná fica a 90 quilômetros de Curitiba. Quatro médicos que moram na capital fazem o trajeto diário até ali. O salário médio é de R$ 15 mil, mas não incentiva os profissionais a morarem na cidade. A remuneração é similar à paga em Doutor Ulysses, também na região metropolitana. Três médicos pernoitam, de segunda a sexta-feira, mas o motivo da permanência é de ordem estrutural: melhor dormir em Doutor Ulysses do que enfrentar 50 quilômetros de estrada de chão antes de chegar ao asfalto que leva a Curitiba.

Rotinas de pernoites e longas estradas são comuns em todo o Paraná. Cinco médicos que moram em Laranjeiras do Sul, no Sudoeste, vão e voltam todos os dias de Porto Barreiro, a 18 quilômetros. O salário médio é de R$ 10 mil. O tamanho da cidade, contudo, não atrai. "Porto Barreiro não tem um colégio particular onde o médico possa colocar seu filho", observa o secretário de Saúde, Anderson Alberto Marangoni.

O vaivém é tão cansativo quanto perigoso. Telêmaco Borba, nos Campos Gerais, não está na lista dos municípios sem médicos fixos, mas também depende de profissionais que residem fora. No início de agosto, o médico Orlando Mayer, 67 anos, viajava de São Mateus do Sul para Telêmaco Borba para cumprir plantão quando sofreu um acidente na estrada e morreu.

Em Conselheiro Mayrinck, Norte Pioneiro, a situação é melhor, em termos. Os dois médicos que trabalham ali recebem entre R$ 25 mil e R$ 30 mil para atuar no hospital, no posto de saúde e no centro da mulher. A cidade se cadastrou no programa Mais Médicos e foi contemplada. O secretário de Saúde, Sidnei Silva de Lima, diz que a vinda dos profissionais será um alívio. Dos dois médicos que atendem no município, um mora em Ibaiti, e outro vai se aposentar em outubro.

Política do "quem dá mais" inflaciona salários

O presidente da Associação dos Municípios do Paraná (AMP), Luiz Sorvos, afirma que a escassez de médicos em pequenas cidades inflacionou os salários pagos pelas prefeituras. A média de gasto por profissional nesses locais está entre R$ 20 e R$ 22 mil – mais que o dobro da bolsa oferecida pelo governo federal.

"Não há alternativa. Tem de pagar. Do contrário, outro prefeito vai lá e paga", diz Sorvos, para quem o principal benefício da chegada dos estrangeiros será o início de um processo de adequação salarial.

Enquanto isso, os prefeitos fazem ginástica para garantir as contratações. Em Lindoeste, a 45 quilômetros de Cascavel, 10% da arrecadação de R$ 900 mil mensais é usado para o pagamento de médicos. O último profissional residente deixou o posto há 14 anos. A cidade tem 5.363 habitantes.

Dois médicos concursados atuam nas unidades de saúde do município, mas a prefeitura mantém contrato com uma clínica de Cascavel, que fornece profissionais para o hospital local. Lindoeste participou da primeira chamada do programa Mais Médicos, sem sucesso. O prefeito Silvio Santana (PMN) pretende se reinscrever no programa.

O ginecologista Celso Cardoso mora em Cascavel, mas duas vezes por semana atende em Lindoeste. Ele vê dificuldades em morar num pequeno município. "Se o sujeito for o único médico da cidade, vai ter de trabalhar 24 horas por dia, 30 dias por mês."

Também no Oeste, Pato Bragado, com 4.823 habitantes, foi a cidade paranaense com poucos moradores a atrair um profissional do Mais Médicos. Mas não houve tempo para comemorações. "O candidato pensava que ficávamos perto de Londrina. Quando soube da distância de 400 quilômetros, desistiu", conta a secretária de Saúde, Marciane Specht.

Há seis anos, Pato Bragado chegou a fazer um concurso para contratar um profissional por R$ 6 mil mensais. Ninguém se inscreveu. O único profissional fixo que fazia atendimento na cidade, pelo SUS, abriu um consultório particular. Os outros médicos da prefeitura recebem R$ 20 mil mensais.

(André Gonçalves, com informações de Luiz Carlos da Cruz, de Cascavel)

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