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Contando, ninguém acredita. Na juventude, José Campolim da Cruz, 82 anos, conseguia ver da Vila Hauer, onde morava, o distante Cemitério Água Verde. Mais do que enxergar, sentia o cheiro que exalava dos então chamados "campos santos". Em vez de um frio correndo pela espinha e um "Anjo Santo do Senhor" rezado às pressas, pensava que um dia estaria lá. Mas precisava de um lote, grande problema para um garoto que enfrentou a semi-escravidão numa fazenda de café, no interior de São Paulo, onde nasceu, e que teve de driblar os fardos da pobreza, dia após dia, uma história de vida que, num mundo perfeito, lhe garantiria o direito a um mausoléu na melhor quadra do Municipal.

José se alfabetizou na adolescência, entrou na faculdade aos 40 anos, formou-se em Economia, aposentou-se na Justiça Eleitoral e leu compulsivamente até pouco tempo, quando o fastio e a "dor nas cadeiras", como diz, deram de lhe atazanar. Semana passada, esqueceu o desconforto da coluna e deu brado digno de torcida brasileira em Copa do Mundo ao saber que havia ganhado um terreninho no Água Verde, depois de exatamente 15 anos na fila de espera, a contar do dia em que procurou o escritório da instituição, na Praça Rui Barbosa, e se candidatou a uma vaga. Hoje, o homem que leva Cruz no nome, tem uma vida bem diferente daquela dos tempos de colheita de café e Vila Hauer. Mora numa casa confortável do Pilarzinho e da janela não avista túmulos nem exala odores estranhos, mas vê árvores e, lá embaixo, uma Curitiba de concreto que fica bem mais bonita de longe. Mesmo assim, foi como se o destino lhe tivesse feito uma pequena obra de justiça – uma justiça de 1,5 por 4,5 metros quadrados e taxas que mal chegam a R$ 300, tudo o que vai ter de desembolsar pelo lote.

Campolim faz parte de um grupo de 793 pessoas que entre 1991 e 2002 pediram ao poder público o privilégio de serem sepultadas no Cemitério Água Verde. Não é exagero dizer que a maioria não tinha muita esperança de ser atendida. Além das concessões terem sido canceladas já de longa data, assim como o Municipal, o Água Verde é um sonho de consumo distante – algo como uma chacrinha em São José dos Pinhais: é para poucos. O campo é central, tem boa estrutura e, mesmo cercado de construções por todos os lados, ainda oferece aquela paisagem que faz jus ao sentido dos cemitérios: eles estão ali para lembrar a quem passa que um dia se vai dessa para outra. Não tem choro nem vela. Em miúdos: a geografia de baixada do local não é nada discreta, garantia de que o sono eterno, por ali, não é sinônimo de cair no esquecimento.

Não à toa, a fila por um jazigo no bairro que deve ser tão velho quanto Curitiba é quatro vezes maior do que a do belo Municipal – que bem merecia ser um dos pontos turísticos da capital, mesmo sem ter uma Evita Perón enterrada por lá. A contar pelos pedidos, a predileção pelo Água Verde também supera os mais populares Boqueirão e Santa Cândida, onde a média de candidatos por uma vaga é de 400 nomes em cada. É verdade, os tempos de glória do Água Verde ficaram em alguma página arrancada da Folhinha do Sagrado Coração de Jesus, paróquia ao qual pertence, mas nada que faça alguém levar a sério aqueles que consideram um desperdício seus 97.827 metros quadrados de área nobre, a maior dentre os cemitérios municipais (veja quadro). Para quem mora em volta, inclusive, a piada é sempre a mesma: temos a melhor vizinhança do mundo. Não incomoda.

Pelas contas da administração, o Água Verde tem 704 jazigos em petição de miséria. E bota miséria nisso. A reportagem fez um tour pelas quadras 101, 149 e 154 – três das mais avariadas – e conferiu um misto de Juízo Final com Guerra no Iraque. Em muitos endereços, dá para ver a cova rasa, onde brota tiririca a granel. Outros ficaram baldios. E há ainda aqueles que deixaram os ficcionistas e historiadores da vida privada com ímpetos de inventar ou pesquisar: quem seriam aquele homem e aquela criança nas fotos em sépia na quadra 149?

Os nomes dos proprietários originais constam nas listagens. Passa-se por Ralf Ritzman, João da Silva Santos, João Peters, Odório Ribas, Nicola Lanzides, até fechar 700 e poucos titulares cujos herdeiros nunca mais deram notícia. Depois de tanto tentar contato, a prefeitura tomou as chaves do reino e decidiu repassar os endereços abandonados, tirando do prejuízo gente como José Campolim da Cruz, cujo sonho de um dia estar no Água Verde vem da mocidade. O prazo para se apresentar à administração, provar que é dono e se dispor a botar tijolos, cimentar e passar uma mão de tinta acaba na terça-feira, 13 de junho. Mas até agora, apenas cem famílias requereram seus direitos. Dos 793 no aguardo, 693 serão chamados nos próximos dias. A não ser que haja um milagre de Santo Antônio e quase 700 famílias se lembrem dos seus mortos. Obviamente, tem muita gente pedindo a Deus que não.

Para o ex-deputado estadual Walmor Trentini, há um ano diretor de Serviços Especiais da Secretaria Municipal de Meio Ambiente – setor responsável pelos cemitérios –, a explicação para tantos túmulos abandonados num espaço como o do Água Verde é só uma: deve ser de gente que mudou de Curitiba. Além disso, conta a filosofia muito particular que rege a rede pública de sepultamentos. Não há taxas, tudo é mantido pela prefeitura, a única obrigação é zelar pelo pequeno patrimônio, o que exige boa vontade e tempo, o último, pelo menos, em falta no mercado. A vida corrida e a provável secularização do culto aos mortos, um fenômeno da sociedade ocidental, concorrem para deixar tudo ao deus-dará, mas nem o céu nem o inferno incluem serviço de manutenção na "última morada".

Há também espólios enroscados e heranças que ninguém sabe muito bem com quem fica. É o caso da família Gonçalves de Castro, que se deu conta do problema logo que leu uma matéria sobre o ultimato da prefeitura. O antepassado Tobias e uma filha dele, morta ainda bebê, estavam lá, entregues à misericórdia divina desde 1979, quando houve o último sepultamento no local. "Ficaram a sete palmos", dizem os herdeiros. Eles figuram na centena de proprietários que foram atrás de uma cova para chamar de sua. "Investimos R$ 2,6 mil na reforma, que nos deu três gavetas e um ossário", explica Hilda de Castro. Além do lucro, já que num cemitério particular um túmulo oscila entre R$ 13 mil e R$ 15 mil, os Castro aproveitaram a deixa para retomar histórias que estavam enterradas, por serem obviamente dolorosas. Mas avisam que todos passam bem. Viver e morrer tem mesmo dessas coisas.

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