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 | Jonathan Campos/ Gazeta do Povo
| Foto: Jonathan Campos/ Gazeta do Povo

Livro responde perguntas, mas cria outras tantas

A maior proeza de Deirdre Bair no livro Começar de Novo é o seu escopo. Embora não tivesse a pretensão de esgotar o assunto, a impressão deixada pelo volume é que a autora chegou perto disso. Por ter ouvido 394 pessoas – 126 homens, 184 mulheres e 84 filhos adultos – de diversas cidades dos Estados Unidos e do exterior, ela consegue abordar uma variedade incrível de situações.

Deirdre fala de casais que chegaram ao fim da relação como se estivessem jogando fora uma roupa velha que não usam há anos. Outros preferiram cultivar o ódio como se suas vidas dependessem disso. Há casais que reataram depois de muito tempo separados e viveram juntos até o fim. Outros voltaram a romper um, dois ou três anos depois.

Muitos casaram de novo, muitos não. Há quem se separou porque queria ficar sozinho, curtir o silêncio e não ver nunca mais a mesma cara que passou a vida inteira vendo.

Em alguns pontos, o livro pode parecer laudatório. Deirdre se limita a transcrever as histórias que ouviu, mas não emite opiniões sobre elas. Não procura amarrá-las nem interpretá-las. Para compensar, os relatos são tantos e alguns, tão tocantes, que é impossível passar indiferente por eles.

Talvez por falar com pessoas de mais de 60 anos, o texto é também o retrato de uma época, ou do fim de uma época. Começar de Novo descreve a crise de um formato de família em que a mulher vive em dependência total do marido, lava suas roupas, cuida da casa e dos filhos. E, quando algo dá errado, acaba se tornando refém da situação. "Liberdade" foi uma palavra que a escritora ouviu muito das entrevistadas.

Numa tira de quadrinhos de Charles Schulz, o cãozinho Snoopy aparece triste porque diz ter descoberto as respostas para todas as perguntas e, no instante em que isso aconteceu, mudaram as perguntas. É um pouco a impressão deixada pelo livro de Deirdre, que responde várias questões, mas cria outras tantas.

Irinêo Baptista Netto

Serviço:

Começar de Novo, de Deirdre Bair.

Tradução de Fal Azevedo. Rocco, 384 págs., R$ 54.

Um tempo atrás, este jornal publicou o anúncio de um senhor e uma senhora que estavam comemorando 60 anos de casamento. Eles convidavam familiares e amigos para uma missa. O estranho é que nenhum dos dois sorria na fotografia em preto e branco. Apareciam ao lado um do outro, mas mal se encostavam. O homem olhava distraído para o lado e a mulher encarava a lente, mas seu rosto era resignado e cansado. Nada na imagem sugeria uma celebração. É como se os dois não tivessem se dado conta de que fariam bodas de diamante até alguém chamar a atenção para isso.

Se pensassem no assunto, teriam vivido uma vida inteira juntos? Ou gostariam de conhecer outras pessoas, dançar, viajar e dormir com outras pessoas? Ou prefeririam ficar sozinhos?

Para quem está de fora, os motivos de uma união longa podem ser tão misteriosos quanto as razões que levam alguém a se separar depois de duas, três ou mais décadas de casado. A escritora norte-americana Deirdre Bair, ela mesma uma senhora de cabelos brancos e idade avançada (mas não revelada), ficou intrigada quando leu uma revista na sala do dentista, editada pela As­­sociação Americana dos Apo­­sentados e voltada para a terceira idade. A capa falava do "novo divórcio".

Depois de biografar os escritores Anaïs Nin e Samuel Beckett, Deirdre não hesitou em embarcar num novo projeto e falar sobre o divórcio tardio. Começar de Novo acaba de sair no Brasil pela editora Rocco e é resultado de mais de 400 entrevistas que a autora fez com homens e mulheres de 60 anos ou mais que decidiram acabar com seus casamentos de décadas.

O livro de Deirdre detona todo o mistério. Uma das respostas mais frequentes que ouviu de pessoas que se separaram depois de passar uma vida ao lado de outra pessoa foi: "cansei". A maioria só se arrependeu de ter demorado tanto para tomar uma atitude. Funciona assim: a certa altura, as mulheres (as que mais pedem divórcio) têm um clique e dão conta de que não querem mais viver ao lado do marido, não gostam dele e não precisam dele. Há casos graves, de mulheres que sofriam algum tipo de violência – física, verbal ou moral – e o divórcio foi uma conquista da liberdade.

É o caso de M., de 61 anos, uma costureira curitibana que vê a separação como a melhor coisa que aconteceu na sua vida. Os dois brigavam muito. O ex-marido não tolerava o fato de ela querer trabalhar ou ter outros interesses além da casa e dos filhos. A insegurança do homem, em formas e intensidades diferentes, é um motivo recorrente entre os entrevistados de Deirdre Bair. Encurralada pelo ciúme do parceiro, M. levou sete anos até conseguir romper. As dificuldades que enfrenta hoje por ter um salário pequeno são fichinha perto do pesadelo a dois que tinha dentro de casa.

J., de 71 anos, contou que ainda mora com a esposa, mas eles não se falam e mal se olham. Quase 20 anos atrás, ele a traiu com outra mulher. Quando o caso veio à tona, J. disse que iria embora para viver com a amante, mas foi rejeitado pela outra. A mulher o aceitou de volta por uma questão prática. Se houvesse separação, teriam de encarar percalços financeiros. Optaram por ficar juntos e manter, de certa forma, a rotina que tinham. Se perguntar a J. se valeu a pena continuar em casa, ele encolhe os ombros e diz "É..." como se quisesse, no fundo, dizer "Não".

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não fornece dados detalhados quanto à idade das pessoas envolvidas em divórcios e separações no Brasil. As estatísticas mais recentes se referem a 2008 e falam que a idade média dos homens é 39 anos na separação e 43 no divórcio. No caso das mulheres, é 35 e 40. Um em cada quatro casamentos não vai para frente.

Um dos relatos mais surpreendentes de Deirdre Bair fala de um casal que se separou depois de 42 anos juntos. Duas décadas mais tarde, já octogenários, ambos foram diagnosticados com Alzheimer. Para poder cuidar dos pais, a filha única os levou para casa. Quando se reencontraram, eles se tornaram companheiros inseparáveis, lamentando o fato de não terem se conhecido antes. Não lembravam que haviam sido casados a vida inteira, brigaram sempre e chegaram ao fim do casamento sem suportar a presença um do outro.

Nesse caso, a convivência parece ter estragado uma química que era boa. Uma vez apagada a memória, a química voltou a funcionar. Outros casamentos se beneficiam da convivência. Enfim, não há regra. Nas histórias de Começar de Novo, é assustador o número de casamentos que se prolongaram por décadas sem qualquer tipo de conversa. Homem e mulher dormem em camas separadas, de quartos separados, às vezes em casas separadas. É, para citar uma epígrafe usada por Deirdre, "a intolerável solidão que alguém experimenta na presença da ausência".

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