• Carregando...
 |
| Foto:

Leia a primeira parte da série

Os novos bárbaros

A cidade dos horrores

A cidade dos horrores

Curitiba nem está entre as cidades mais violentas do Brasil, mas seus traficantes têm se colocado entre os mais temidos. Só no ano passado houve 13 casos de mutilações na capital e em outras cinco cidades sob sua influência direta. A série de execuções à moda medieval teve início em 6 de janeiro. Douglas dos Santos Nascimento, 16 anos, foi espancado e arrastado pelos becos da Vila Tripa, no bairro Umbará, até perder o couro cabeludo, teve a cabeça esmagada com uma pedra e o corpo jogado numa valeta.

Leia a matéria completa

  • Veja que os métodos bárbaros de execução, surgidos no Rio, se espalham pelo país

Domingo, 28 de setembro de 2008, meia-noite. A polícia encontra a cabeça cortada de uma criança dentro de uma mochila abandonada na periferia de Foz do Iguaçu, na fronteira do Brasil com a Argentina. Sete horas depois, o resto do corpo surge boiando no Rio Paraná, 15 quilômetros acima, já na fronteira com o Paraguai. Um mês antes, a cabeça de um rapaz de 20 anos ficara exposta em praça pública na mesma cidade e o corpo atirado numa favela. Aos 12 anos, Igor Joaquim de Matos foi julgado, condenado e executado de uma maneira cada vez mais usada pelo narcotráfico: a tortura e a imolação de crianças e adolescentes como forma de exibir poder.

A cada ano, 17 mil jovens até 24 anos são assassinados no Brasil – 1.400 todos os meses, 47 todos os dias. Mas apesar desse morticínio sistemático, só 1.028 jovens jurados de morte pelo narcotráfico recebem proteção especial do governo federal. Os demais estão a mercê de um fenômeno tão comum quanto preocupante. Já não basta matar, é preciso se impor pela barbárie. Execuções com dezenas de tiros, estampadas à exaustão nos noticiários, se tornaram banais, não exercem mais a função pedagógica a que se propõem. Por isso, os traficantes buscaram no catálogo de horrores da Idade Média as penas de morte impostas por meio de esquartejamento, decapitação, empalação, escalpelamento.

Robert-François Damiens sofreu uma das punições mais bárbaras da História ao atentar contra a vida do rei Luís XV. A execução por esquartejamento virou exemplo dos suplícios infligidos no século 18. Levado numa carroça ao patíbulo instalado na praça de Grève, em Paris, Damiens teve esfolados os mamilos, os braços, as coxas e as pernas, recebendo sobre as feridas chumbo, cera e enxofre derretidos, óleo fervente e piche em fogo. Em seguida, mãos e pés amarrados a seis cavalos, teve o corpo rasgado ao meio, os restos foram consumidos em brasa e as cinzas lançadas ao vento. Tudo em praça pública, para servir de exemplo.

Dois séculos e meio após a morte exemplar na França de 1757, quando se imaginava superada a era da selvageria, a execução de Igor na fronteira do Brasil com o Paraguai e a Argentina lança-nos de volta à era da barbárie. Na época de Damiens, os suplícios impostos aos condenados reafirmavam o poder absoluto do soberano, que não admitia a violação de suas leis. Hoje, os soberanos do estado paralelo regido pelo narcotráfico aplicam os piores castigos a quem transgride suas regras. Igor foi um deles. Julgado e condenado pelo tribunal de exceção do tráfico, acabou decapitado com base em leis difusas e não escritas.

Nobres e plebeus iam às praças europeias para se deleitar com os espetáculos sangrentos. Hoje o traficante deixa os pedaços de suas vítimas espalhados em locais públicos, numa clara demonstração de poder sobre a vida e a morte. O patíbulo agora são os micro-ondas, locais onde as vítimas são julgadas e queimadas vivas dentro de pilhas de pneus velhos – uma morte agonizante destinada aos traficantes rivais, aos delatores, aos viciados inadimplentes. Criado por traficantes cariocas, que esquartejam e ateiam fogo às suas vítimas no alto dos morros, o método de execução no micro-ondas se alastrou país afora.

O monarca da Idade Média era figura sagrada e seu governo sempre legítimo, fosse justo ou não, pacífico ou violento. Revoltar-se contra ele era crime de sacrilégio, ofensa indireta à autoridade divina. A punição com violência física tinha o propósito de salvar-lhe a alma. Na análise do filósofo Michel Foucault (1926-84), a execução perdeu força como espetáculo pois ao dar tal desfecho ao crime, a cerimônia igualava-se ou ultrapassava-o em selvageria, acostumando o espectador a uma ferocidade da qual o queriam distante. Também invertia os papéis, fazendo do carrasco um criminoso, dos juízes assassinos e do supliciado um objeto de piedade e admiração.

Os soberanos de hoje desdenham dessas idiossincrasias. Seus semelhantes medievais não impunham suplícios a crianças, mas os de agora não fazem caso da idade de suas vítimas. Mordidos pelo gato preto de Edgar Allan Poe, e, apoderados por uma fúria dos diabos, agem como se a raiz de sua alma se separasse do corpo e uma maldade mais que diabólica estremecesse cada fibra do seu ser. Nada mais refreia o ódio que demonstram sentir, e surgem os crimes por puro deleite. Crimes que, no entender da psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, não visam destruir um inimigo, ou eliminar um adversário, mas sim aniquilar o humano no homem.

Para a psicanalista Simone Rugani Töpke, da Associação Psicanalítica de Curitiba, o limite da morte, que aponta para a impossibilidade do controle e a necessidade do homem haver-se com a falta, está sendo pervertido por uma ciência e uma cultura que caminham convictas na direção imaginária de que é possível impedi-la ou ao menos retardá-la extirpando sintomas e modelando corpos tomados como objetos e perdidos de sua dimensão simbólica. "Essas mortes violentas podem ser entendidas como um sintoma social que parece denunciar, no real dos corpos dilacerados, o reflexo da hipervalorização cultural de um imaginário pleno e perfeito onde tudo pode, sem impedimentos da lei, sem espaço para faltas, para diferenças, para a singularidade", diz.

Essa violência, fruto de uma sociedade perversa, parece exorbitar a constatação de Sigmund Freud (1856-1939) de que o homem é tentado a satisfazer no outro sua agressividade. O psicanalista Ney Couto Marinho, membro da Federação Brasileira de Psicanálise, entende que ações desse gênero acontecem porque grupos marginais tentam manter ou recuperar a violência que marcou a constituição da sociedade brasileira, muitas vezes não só permitida pelo estado, mas sancionada por ele. Um traço marcante foi a escravidão, cujo método disciplinatório era o suplício público no pelourinho. Já os negros fugidios eram caçados e torturados como animais pelos capitães-do-mato.

O mau exemplo

A Antropologia não concebe sociedade sem conflito entre seus grupos e indivíduos. O problema é quando instituições com papel de controle dão o mau exemplo. Nossa tradição de violência como política de estado ainda é recente, diz Marinho. Não faz três décadas que o país extirpou a ditadura militar, que usava a tortura não só para obter informações, mas para eliminar os adversários do sistema. Hoje as execuções estão tipificadas como crime de tortura na legislação brasileira. Mas o narcotráfico cresceu nos vazios do estado e, colocando-se acima das leis, o traficante impõe suas próprias regras nas suas áreas de atuação.

O sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, autor de diversos estudos da Unesco sobre violência no Brasil, percebe no domínio do tráfico uma demonstração preventiva de violência. O recado é claro: não há como fugir, quem quebra a norma será punido. A violência do tráfico sempre foi excessiva, observa Waiselfisz, mas hoje ela está mais visível na mídia pelo poder desses grupos. Eles agem no extremo da barbárie por não tolerar insubordinação, para mostrar para todo mundo quem é que manda, para amedrontar facções rivais, para impor respeito em seus territórios através do medo, para queima de arquivo e, de quebra, fazer a polícia perder o que resta de sua credibilidade.

Nesse ambiente a criança cresce acostumada às regras. O cotidiano banaliza a violência, lhe confere certa naturalidade e forja uma geração perversa e suicida. "Se não tiver sofrimento não tem graça. Tem que matar, cortar o pescoço, ir no velório, no enterro", disse à reportagem uma menina de 14 anos ameaçada de morte. Abandonada pelo pai, órfã de mãe, há muito ela perdeu o gosto pela vida. "Se morrer, morreu. Pelo menos fica em paz, porque vivo tem muita gente para encher o saco", diz. O traficante antes tido como herói é o mesmo que a quer morta por dívidas de droga. É o dono do vício e da vida de adolescentes como ela.

Os patrões do tráfico agem duro porque vivem numa constante relação de dominação com os rivais. Nessa correlação de forças, a violência primitiva nessa disputa de facções pelo controle de território já assume características de guerras tribais. Em julho de 2004, por exemplo, a cabeça decepada do traficante Luciano Alex dos Santos, 29 anos, ficou exposta na passarela de acesso à estação do metrô em Acari, no Rio de Janeiro. Ao lado, uma lista com o nome das próximas seis vítimas. Na testa de Luciano, as iniciais da facção criminosa Amigos dos Amigos (ADA) escritas com tinta branca.

Em 2007, Márcio Nepomuceno dos Santos, o Marcinho VP, foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio a 36 anos de prisão por assassinar traficantes rivais por esquartejamento. Os assassinatos de André Luís dos Santos Jorge e Rubem Ferreira de Andrade foram em outubro de 1996. Em 16 de setembro de 2008, Antônio Ferreira de Souza, 32 anos, chefe do tráfico de drogas do Complexo do Alemão, foi morto junto dos dois irmãos e outros três bandidos por tentar dar um golpe de estado no Comando Vermelho, que domina a região. Ele foi decapitado e seus restos mortais incinerados.

Os novos métodos de execução surgiram no Rio e se alastraram pelo país. Uma das primeiras vítimas foi o jornalista Tim Lopes, capturado em 2002 no Complexo do Alemão em represália a reportagens denunciando exploração sexual infantil em bailes funk. Ele foi baleado, mutilado e incinerado com gasolina e óleo diesel no micro-ondas do tráfico, no alto da favela da Grota. Antes dele, outras 60 pessoas também haviam sido presas, torturadas, julgadas, condenadas e cremadas vivas pelo tráfico na área dominada por Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, condenado em 2005 a 28 anos de prisão pela morte do jornalista.

Vidas curtas

As execuções hediondas se alastraram com uma frequência assustadora por todo o país. A cidade onde Igor foi decapitado, por exemplo, é um lugar onde a vida é mesmo muito curta, onde 505 jovens com menos de 18 anos foram assassinados em sete anos, onde a taxa de homicídio juvenil é a maior do Brasil: 234,8 mortes por 100 mil habitantes, segundo o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros. Foz do Iguaçu é estratégica para o narcotráfico sul-americano, porta de entrada da maconha do Paraguai e cocaína da Bolívia. Nas contas da Polícia Federal, só no trecho de 200 km do reservatório da usina de Itaipu, na fronteira paraguaia, atuam 40 grupos criminosos.

Esse rápido perfil ajuda a explicar porque 80 das 100 crianças e adolescentes protegidos em abrigos de Foz estão jurados de morte. Só estão vivos graças a conselheiros tutelares, assistentes sociais, religiosos, organizações não-governamentais e alguns poucos abnegados do Poder Judiciário. Apesar do histórico, a cidade não foi incluída no Programa de Proteção à Crianças e ao Adolescente Ameaçados de Morte, mantido pelo governo federal em cinco estados. Desde 2003, o programa protegeu 1.203 crianças e adolescentes e 1.931 familiares – 1.320 só em 2008. A maioria tem entre 14 e 17 anos, mas não são poucos os menores de 10 anos.

Minas Gerais lidera o ranking de pessoas sob a tutela do programa de proteção, com 607 crianças e 1.393 familiares. Em São Paulo, 235 crianças e 87 familiares vivem escondidos, sob pseudônimos. No Rio, são 139 crianças e 134 familiares, outros 82 em Pernambuco e 11 no Distrito Federal. Ao todo, são 1.028 meninos e meninas impedidos de permanecer em casa após desavenças com traficantes. "É a lógica perversa do tráfico. Eles são seduzidos pela proteção inicial que a figura do traficante impõe, o mesmo que mais tarde os ameaça quando as leis do crime não são respeitadas", diz o juiz da infância de Santo Amaro, Iasin Ahmed, um dos coordenadores do programa.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]