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Crianças e adolescentes jogam floorball no ginásio da Ossa, uma das ONGs da ocupação: esporte para prevenir “linhas proibidas” | Henry Milléo / Gazeta do Povo
Crianças e adolescentes jogam floorball no ginásio da Ossa, uma das ONGs da ocupação: esporte para prevenir “linhas proibidas”| Foto: Henry Milléo / Gazeta do Povo

Isso é o Audi-União

Veja o que há no mundo da vila:

1. Igrejas: dados da Polícia Militar indicam haver 70 confissões religiosas diferentes na região. Apenas na Rua Helena Piekarski, a principal, são nove templos, a maioria funcionando em pequenas lojas. As denominações das igrejas são de fato raras: Chama do Avivamento, Restaurando Almas, Servo de Cristo, Missão Evangelística, Comunidade Apostólica Etnias, Coluna de Fogo – essa seguida dos dizeres "em breve".

2. Comércio: contrariando a máxima de que na periferia se alternam uma igreja, um bar, uma loja de material de construção, o bolsão tem perto de 30 bares, hoje monitorados pela PM. No geral, a quantidade de comércio impressiona, contando a favor da comunidade. Dados da Cohab de 2007 apontavam 70% de informalidade na região, o que pode explicar tantas "portinhas". A reportagem contabilizou 48 comércios em oito quadras e mais oito nas ruas imediatas. Há, por exemplo, nove lojas de roupas, cinco eletrônicas, mas apenas uma farmácia. E dois supermercados. Seis lojas estão fechadas.

3. Rotatividade: na escola, na associação, nos projetos sociais, a reclamação é sempre a mesma: a marca do Bolsão Audi-União é o nomadismo. Mudar de ocupação em ocupação, prática comum nas periferias, frustra o trabalho dos agentes, em especial no setor da infância. O troca-troca também favorece a violência, pois enfraquece a ação comunitária.

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Pequenas histórias da ocupação

Marcelo Ariovaldo Porcino, 39 anos, pode se orgulhar de ser o homem mais conhecido do Bolsão Audi-União. Pequenino e dado a longos discursos -- sempre com a voz baixa e abafada de quem conta segredos -- ele entra a cada mês em pelo menos 250 casas da ocupação, o que lhe garante parte da popularidade.

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Há exatos dez anos, Claudete Frighetto e outras religiosas de sua comunidade, a das irmãs de Santa Úrsula, aceitaram o convite feito por uma filha de carrinheiros, a quem serviam refeições num pequeno projeto social: visitar o lugar onde a menina morava. Ficava a apenas três quilômetros do convento, não custava nada. Além do mais, acostumadas às lides na periferia, as freiras se sentiam preparadas para conhecer mais uma zona pobre de Curitiba.

Pois se enganaram. O que viram lhes escapava à experiência. A garota vivia no Icaraí, uma das vilas da área de ocupação conhecida como Bolsão Audi-União, no Uberaba. Parte das casas tinha água do Rio Iguaçu batendo à porta. Os barracos em petição de miséria lembravam um campo de refugiados. Os morros criados pelas cavas de areia escondiam sempre casas e mais casas, quais esconderijos.

"Nos disseram que era um lugar perigoso", lembra a irmã Claudete, 45 anos. Mas nada que a impedisse, pouco tempo depois, somar-se aos então 7 mil moradores da ocupação, abrindo ali o Centro de Educação Infantil Recanto Feliz, que hoje atende 74 crianças em idade pré-escolar. Tudo indica que outras pessoas viveram histórias parecidas. Levantamento feito pela Cohab em 2007 apontou cerca de 30 centros de ação social – das mais diversas naturezas – atuando no bolsão. Mais da metade desses serviços não está vinculada ao estado ou ao município, mas a livres iniciativas, como associações de bairro, ONGs ou congregações religiosas.

O levantamento traz um dado saboroso. As 15 vilas que formam o complexo Audi-União ainda estão em fase de regularização fundiária. Não há propriedade dos terrenos. A lei vale para as organizações do Canadá, Suíça, Polônia e Itália que atuam na área. E para a própria prefeitura, dona de uma dezena de equipamentos. "É o máximo da igualdade", brinca a educadora Eliete Werner, 34, da ONG canadense Voice For Change, instalada no coração da ocupação – a Rua Helena Piekarski, antiga Avenida Progresso.

A graça de haver tantas ações estrangeiras numa área favelizada serve para reforçar o quanto o bolsão é um primor do ponto de vista da organização popular. Formou comunidade. Para não deixar mentir, estão lá três ativíssimos clubes de mães e nove associações comunitárias – tão fortes que são o objeto de desejo dos políticos em campanha. Somem-se as pastorais religiosas, creiam, das mais de 70 confissões diferentes espalhadas do Icaraí ao Solitude. O intrigante é que esses movimentos todos – atuando parte em rede – não foram capazes de impedir que o Audi-União se tornasse zona de tráfico e responsável por 60% dos crimes, em média, registrados no bairro Uberaba, o que o fez merecedor da primeira Unidade Paraná Seguro, a UPS. Eis a questão.

Termômetro

É de consenso entre analistas de violência que a organização comunitária funciona como um termômetro. Ainda que os líderes costumem se pegar à unha, quanto mais forem, maiores as chances de neutralizar a desagregação promovida pela criminalidade. A relação da UPS com esses grupos é condição para que dê certo. Para surpresa, não é o ponto alto da ocupação policial. "Acho que a UPS não passa de propaganda. Foi o susto do helicóptero chegando no primeiro dia, só. Não vejo envolvimento da PM com a gente", protesta Sueli Carneiro, 44, do Clube de Mães da Vila Audi – que atende a 180 famílias.

A maior parte dos procurados pela reportagem da Gazeta do Povo cita o dia em que alguém da PM bateu à porta e se apresentou, reconhecendo a importância dos grupos na região. E só. Do outro lado, a PM tem em ata as reuniões mensais promovidas com a comunidade. Há até a pompa de convites impressos. Mas pouca gente vai aos encontros. De duas, uma – ou as lideranças não se sentem parte do projeto UPS ou são desinteressadas, replicando a máxima popular de que criminalidade é problema do Estado.

No "bolsão cansado de guerra" esse debate causa urticárias. "Nosso objetivo não é controlar a violência, mas garantir que as crianças daqui tenham um futuro melhor do que seus pais", rebate a irmã Claudete Frighetto, 45, em coro com outros agentes. "Falta-nos inclusive informação técnica para tratar da realidade da comunidade", acrescenta o assistente social Augusto Luiz de Lima, 30, da Obra de Santo Aníbal, a Ossa, iniciativa dos religiosos rogacionistas, de origem italiana, responsável pelo atendimento de 150 crianças e adolescentes, a maior em todo o bolsão. "Não tenho medo. Digo que meu jaleco de professora é meu colete à prova de bala", informa Lisiane Gastaldim, 34, diretora da Escola Municipal Maria Marli Piovezan, integrada à UPS.

Para o estado, o município e a Polícia Militar, ter gente como Eliete, Augusto, Lisiane e Claudete – entre outros – dia e noite vivendo a realidade do bolsão é, sem dúvida, um trunfo no combate à criminalidade. A "ronda" que os líderes fazem é sofisticada, não dá trégua e é criativa. Exemplos não faltam.

Nas quartas-feiras, por exemplo, a Ossa promove em seu ginásio manhãs e tardes de floorball, esporte popular no Norte da Europa, é claro. O encontro reúne meninos e meninas de vilas diferentes, possivelmente "tretadas", como dizem. "É uma forma de promover a convivência entre áreas diferentes da vila", comenta a educadora Silmara de Paula, 30, da Ossa, sobre o que seria um exemplo de ação antiviolência promovida pelas ONGs e quetais. Ver a turma jogar é mais do que edificante, é uma garantia de que a pacificação é possível. O pessoal da UPS precisa saber disso.

A OrigemO que transformou o Audi-União em um bolsão de violência?

A depender das respostas dadas por dois líderes comunitários, o "aluguel" foi o culpado de as 15 vilas do Audi-União terem sido tomadas pela informalidade e pela violência. A explicação é curiosa. A ocupação começou em 1998, liderada pelos movimentos sem-teto que atuam em Curitiba e Região Metropolitana. Os lotes eram medidos, a largura da rua garantida. Havia regras. Mas aquele grupo inicial teria cedido à tentação de fazer dinheiro, vendendo os terrenos a preços da ocasião para famílias castigadas pelo aluguel, que chegaram ali cada qual a seu modo.

"A segunda turma que veio para cá não estava preocupada com a comunidade, mas em se livrar de uma despesa", pondera Damareis Carlos Laurindo, o Milico, 36 anos, da Vila União Ferroviária, um dos mais jovens líderes da capital. Começou a militar aos 13 e entendeu que só haveria um jeito de tirar da acomodação os novos moradores da região: fazendo menos discurso e conseguindo mais asfalto e menos despejos. "O pessoal só se mexe quando vê resultado", filosofa.

Estratégias

A mesma lógica seguiu Altair Góis, 39, líder da Vila Jardim União. "Tenho impressão que fiz o cálculo de quanto custaria urbanizar cada rua desse bairro. Cansei de ver nosso bairro ser chamado de favela", conta, sobre suas estratégias para lidar com moradores cada vez menos politizados. Infelizmente, o movimento comunitário andou mais lento que a criminalidade, que se instalou triplamente beneficiada – primeiro pelo baixo vínculo dos moradores com o local, segundo pelos péssimos índices socioeconômicos da população e em terceiro pela geografia de "esconderijo". O bolsão fica depois da valeta, da ponte, da linha do trem, perto das cavas. "Vi muita gente boa ir para o crime", reforça Milico.

Nos últimos cinco anos, os reassentamentos e a presença do poder público teriam melhorado as relações nas 15 vilas, ainda que a criminalidade persista. De janeiro até ontem foram 19 mortes na região – quase três por mês. Os líderes relevam. Para Altair, só pode ser bom um lugar em que o comércio usa a cadernetinha, "na confiança". Para Milico, o melhor sinal é de que os 600 moradores que representa não pedem mais cesta básica, mas projetos. O pesadelo instalado pelas bocas de fumo e homicídios a granel, garantem, pode estar perto do passado.

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