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RIO - Em algum momento da História da Terra, a vida deu um salto, deixando a solidão da existência unicelular para formar organismos multicelulares, mais complexos por natureza. Por que, como e quando isso aconteceu, no entanto, são perguntas cujas respostas ainda permanecem em grande parte um mistério para os cientistas, e agora um conjunto de fósseis encontrado na China vem aumentar mais as dúvidas quanto à última questão. Segundo seus descobridores, esses restos indicam que o aparecimento da vida multicelular, ainda que estruturada de forma muito simples, teria acontecido quase 1 bilhão de anos antes do que se pensava.

Encontrados na formação geológica de Gaoyuzhuang, datada em cerca de 1,56 bilhão de anos atrás na região de Yanshan, no Norte da China, 53 dos 167 fósseis de maiores dimensões têm não só tamanho como formato e outras características peculiares — como uma aparente organização de suas células em estruturas reconhecíveis — que sugerem terem sido de fato organismos multicelulares e não pedaços de estruturas conhecidas como “tapetes microbianos”, agrupamentos de organismos unicelulares cujos restos também são vistos em registros fósseis muito antigos, afirmam os pesquisadores.

Quatro formatos básicos

De acordo com os cientistas, os maiores fósseis ultrapassam os 30 centímetros de comprimento e os 53 principais, alvos do estudo, podem ser divididos em quatro formatos básicos: lineares (alongados, com lados paralelos); cuneiformes (com uma “base” maior que a outra ponta); oblongados (arredondados em uma das pontas); e parecidos com uma língua (com pontas arredondadas, mas sem lados paralelos).

A maior parte destes fósseis (79%) se encaixa nos dois primeiros formatos, que parecem estar relacionados, enquanto 15% eram parecidos com uma língua e apenas 6% oblongados. Isso fez os pesquisadores imaginarem estar lidando com pelo menos duas ou até mesmo três espécies diferentes de organismos multicelulares antigos. Essa conclusão também os levou a considerar os restos como pertencentes a seres eucarióticos, isto é, cujas células armazenam seu material genético em um núcleo definido e podem se diferenciar para executarem as variadas funções necessárias para sustentar este tipo de organismo mais complexo, ao contrário dos procarióticos como as bactérias, nas quais o DNA “flutua” livremente no seu interior.

— Nossa descoberta empurra para trás em quase 1 bilhão de anos o aparecimento de seres macroscópicos multicelulares eucarióticos — destaca Maoyan Zhu, professor do Instituto de Geologia e Paleontologia de Nanjing, China, e um dos coautores de artigo que relata o achado, publicado na edição desta semana da revista científica “Nature Communications”. — Isso renova totalmente o conhecimento atual sobre a história da vida na Terra.

O anúncio da descoberta, porém, dividiu a comunidade científica. Para alguns especialistas, o achado é grandioso e sugere que há 1,5 bilhão de anos a atmosfera da Terra já tinha níveis de oxigênio suficientes para permitir o surgimento de organismos maiores e mais complexos do que simples seres unicelulares.

— Eles não são os eucariontes mais antigos, mas certamente são os mais velhos eucariontes multicelulares que podemos indicar — considera Phil Donoghue, professor de Paleobiologia na Universidade de Bristol, Reino Unido.

Outros cientistas, porém, receberam as conclusões dos autores do estudo com grandes doses de ceticismo. Para eles, a análise morfológica dos fósseis não é suficiente para afirmar que eles pertencem a seres multicelulares ou mesmo eucarióticos no lugar de restos excepcionalmente bem preservados e grandes de tapetes microbianos.

— Não há nada aqui que sugira que estes espécimes são eucarióticos e não bacterianos — avalia Jonathan Antcliffe, pesquisador de Departamento de Zoologia da Universidade de Oxford, também no Reino Unido.

— As análises morfológicas, por si só, são absolutamente insuficientes para nos dizer se estes organismos eram multicelulares, eucariontes ou complexos — reforça Abderrazak El Albani, pesquisador na Universidade de Poitiers, França.

Também coautor do artigo na “Nature Communications”, Andrew Knoll, professor de História Natural e Ciências Planetárias e da Terra na Universidade de Harvard, EUA, conta que foi atraído pelos colegas chineses a participar do estudo justamente para ajudar a responder se os fósseis pertenceriam a seres unicelulares agrupados ou eram multicelulares. Especialista na evolução da complexidade da vida em nosso planeta, Knoll se diz convencido de que os restos são de organismos multicelulares, embora muito simples ainda.

— Estamos falando aqui de organismos multicelulares dos mais simples possíveis, com suas células conectadas mas com muito pouca diferenciação entre elas, que provavelmente evoluíram muitas vezes em épocas distintas da História da Terra — ressalta Knoll. — São como algumas algas que vemos ainda hoje, estruturadas em formato de lâmina e cujas células são todas praticamente iguais em estrutura e função.

Salto evolutivo posterior

Segundo Knoll, o verdadeiro grande salto evolutivo da vida no planeta foi quando esses organismos multicelulares passaram a se organizar em estruturas mais complexas e tridimensionais, que diminuem a superfície de contato de suas células integrantes com o meio externo e elas se diferenciam para cumprir funções específicas e vitais internamente, como o transporte de oxigênio e nutrientes. E as evidências fósseis mais antigas de quando isso aconteceu têm apenas cerca de 600 milhões de anos, gerando uma lacuna na progressiva evolução da complexidade da vida na Terra que foi jocosamente, e agora aparentemente erroneamente, apelidada por alguns cientistas como “o bilhão do tédio”, numa referência ao quase 1 bilhão de anos passados entre a explosão da vida unicelular e o que se achava ter sido a época do aparecimento dos organismos multicelulares .

— Estes seres multicelulares simples como os dos fósseis chineses são muito diferentes de nós, por exemplo, que temos mais de 200 tipos de células especializadas e dezenas de tecidos e órgãos diferentes — destaca. — É um salto evolutivo bem maior, o que ajuda em parte a explicar a grande lacuna que vemos nos registros fósseis entre estes organismos multicelulares simples e os mais complexos. Tal evolução talvez tenha acontecido poucas ou mesmo uma única vez na História de nosso planeta.

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