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Fome assola 9 entre 10 comunidades

A fome assola nove entre 10 comunidades quilombolas existentes no Brasil, segundo amostragem do Ministério do Desenvolvimento Social. Os pequenos são os primeiros a sentir as consequências da miséria. De cada 10 crianças, uma apresenta déficit de altura, índice usado para medir a desnutrição. No geral, 90% delas moram em domicílio com renda familiar inferior a R$ 424 por mês e mais da metade vive em lares com renda total menor de R$ 207. A conclusão resulta de entrevistas com 2.941 crianças de 60 comunidades quilombolas em 22 estados, num trabalho de três ministérios e do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).

O estudo Chamada Nutricional Quilombola 2006 revela que 11,6% dos quilombolas de 0 a 5 anos têm altura inferior ao padrão normal. A desnutrição nessa faixa etária é resultado da má alimentação e das infecções decorrentes da falta de saneamento básico. A proporção de crianças desnutridas é duas vezes e meia maior do que na população urbana brasileira (4,6%) e o dobro da população rural (5,6%). A situação é mais grave do que a do semi-árido, região que concentra grande parte dos municípios de pior situação socioeconômica do país.

Os índices sofrem influência direta da escolaridade materna: 8,8% dos filhos de mães com mais de quatro anos de estudo estão desnutridos, índice que sobe para 13,7% entre as crianças de mães com escolaridade menor do que quatro anos. Outros fatores contribuem para agravar o quadro. Só3,2% das casas têm acesso a rede de esgoto e 28,9% à fossa séptica (no Brasil, 45,6% das pessoas moram em domicílios com rede pública e 21,4% em casas com fossa séptica) e apenas 30% das famílias quilombolas dispõem de abastecimento de água potável. O resto consegue por meio de nascentes, poços, açudes, cisternas.

Metidos nas selvas ou montanhas, os quilombos se tornaram aldeias dedicadas à economia de subsistência ou ao comércio, baseados no plantio coletivo e na partilha de alimentos.

O ato político dos quilombolas, rompendo uma ordem social excludente, representava um risco ao establishment dos senhores de engenho. Daí a repressão sangrenta.

De repente, o inferno! O caos se instalou tão rápido que não deu tempo nem para arrumar a trouxa. Indiferente às súplicas, a horda impôs o terror brandindo tochas. A chuva miúda do entardecer nada podia contra a incandescência que reduzia a cinzas as casas e os galpões dispersos entre o mato e a roça de milho e feijão. Natália abandonou a casa em chamas e fugiu sob a garoa com a barriga de oito meses e a penca de cinco filhos à mão. Ao marido, Donato, não convinha tomar satisfações de 60 jagunços armados e furiosos. Olhos fixos no carreiro, ela seguia se indagando o porquê de tanta judiação. A escravidão não fora abolida oito décadas antes?

A visão apocalíptica daquele 31 de dezembro de 1970 acossa-os ainda hoje tal como seus ancestrais eram acossados pelos donos de terra que queriam ser donos de gente. Foi dos valentes antepassados que Donato Batista Monteiro, de 73 anos, e Natália dos Santos Monteiro, 67 anos, herdaram o lugar que à época da escravidão virou um dos tantos focos de resistência e organização de campesinatos negros. Núcleos iguais se espalharam país afora, restando hoje 1.170 remanescentes de quilombos, segundo a Fundação Palmares, do Ministério da Cultura. Os números não são definitivos porque o Brasil ainda está descobrindo a dimensão de sua matiz negra, num resgate da cultura que moldou a etnia brasileira.

Só recentemente os quilombos começaram a ser conhecidos porque permaneciam isolados, e foi por causa dessa condição que conseguiram sobreviver. O isolamento era estratégia de sobrevivência na era escravocrata. Os quilombos tinham caráter efêmero, destruídos pelos senhores de engenho tão logo fossem descobertos. Seus habitantes eram originalmente ex–escravos fugidos, mas muitos surgiram após a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888. Metidos nas matas, selvas ou montanhas, esses locais se transformaram em aldeias dedicadas à economia de subsistência ou ao comércio. O modelo econômico quilombola é baseado no plantio coletivo e na partilha de alimentos.

O regime de uso comum da terra consolidou o território étnico e fundamentou a identidade cultural e coesão social desses grupos. Além de fugir da opressão e reconquistar a liberdade e autonomia, ali os negros conquistavam o status de cidadãos sistematicamente negado pela sociedade escravagista. O ato político dos quilombolas, rompendo uma ordem social excludente, representava um risco ao establishment dos senhores de engenho. Daí a repressão sangrenta, primeiro com o propósito de recuperar os negros fugidos, depois para a punição exemplar como forma de impor medo aos demais. Depois, já nos tempos "modernos", a perseguição passou a ser estratégia para tomar-lhes as terras.

Natália, Donato e a maioria de seu grupo sobreviveram porque souberam recuar e ter paciência para reconquistar seu território, um íngreme pedaço de terra no inóspito Vale do Rio Ribeira, na divisa do Paraná com São Paulo, distante 20 quilômetros do núcleo urbano de Doutor Ulisses. Mulher de fala solta, Natália recorre à prodigiosa memória para narrar os acontecimentos daquele ano enquanto remexe no fogão à lenha o virado paulista e a costelinha de porco. A comida é pouca, mas ela não deixa visita nenhuma sair de barriga vazia. Sentado, as pernas cruzadas, Donato acompanha a prosa fluida da mulher e só volta e meia intervém para acrescentar alguma informação.

A idade e as agruras impostas pelos grileiros não roubaram a lepidez de Natália. Mãos nas ancas, ela fala. E como! "Às veiz, quando chega visita, o Nato diz ‘muié, pruque ocê não cala a boca?’ Eu sô ansim. Uns são mais quieto, otros são mais prosa. Eu gosto de falá pruque ansim às veiz a gente ispanta o mal", diz num fôlego só. Enquanto as visitas comem, ela toma o chimarrão com as pernas trançadas sob a cadeira, sustentada no piso de concreto bruto e desgastado que reveste todo o chão da modesta moradia de três quartos, feita de uma madeira carcomida com escassos vestígios de tinta branca.

Donato raramente toma a iniciativa da conversa, mas quando indagado não deixa pergunta suspensa. Guarda até hoje o cabo do cassetete com que o pai, Luiz Batista Monteiro, foi morto pelos jagunços dos fazendeiros que por diversas vezes tentaram tomar suas terras. Certa vez, bateram pra valer na cabeça, nas costas e na cabeça de Luiz, que agonizou durante semanas. Morreu alguns anos antes do fatídico 31 dezembro de 1970, data que marcou para sempre a vida dessa gente. Donato tinha 36 anos e Natália, aos 31, esperava o sexto dos 10 filhos que o casal teria. Os detalhes do ataque ainda estão claros na mente.

Donato contou 60 homens naquele dia, 20 deles com farda da polícia. Os outros eram jagunços contratados por fazendeiros para expulsá-los dali. Chegaram soltando tiros para o alto e tochas sobre as casas. Fora a grama tosca, nada mais nasceria no lugar onde ficava a residência deles. Em todos os lugares, só havia cinzas. Natália encontrou numa propriedade vizinha os restos de um paiol. Passaria ali uns dias com os filhos – o mais novo de 1 ano de idade e o mais velho de 15. Uma lata de banha faria as vezes de panela, mas faltava a comida. Por sorte, a notícia do ataque se espalhou e parentes e vizinhos distantes trouxeram alimentos.

Natália deu à luz o sexto filho enquanto revezava os dias nas casas de vizinhos. Nesse meio tempo, Donato foi ter com o delegado de polícia de Cerro Azul, município ao qual pertencia a Vila Branca, elevada em 1993 à condição de município com o nome de Doutor Ulisses. O delegado nada fez. Um tio de Donato levou então a queixa a Brasília e, coincidentemente, semanas depois seria publicado no Diário Oficial da União o confisco de 25 mil hectares da fazenda Morungava, onde se localizava o quilombo. O confisco era para ressarcir o desvio de bens praticado pelo grupo empresarial do governador Moisés Lupion.

Por ironia, foi no período mais sangrento da ditadura militar brasileira que uma decisão do general Emílio Garrastazu Médici salvou a família de Donato e outras mil famílias do Vale do Ribeira. Segundo os militares, em 1951 Lupion se apropriou indevidamente da fábrica de papéis da União em Arapoti, explorando-a de forma predatória até 1968, quando o governo a recuperou na Justiça. Uma perícia mostrou que o grupo Lupion havia dilapidado o patrimônio público, o que levou a Comissão Geral de Investigações a usar o Ato Institucional n.º 5 para confiscar outros bens do grupo, no caso a fazenda Morungava, como forma de ressarcir os danos.

As terras passaram para a União, mas as famílias continuaram ali, na condição de arrendatárias ou posseiras. As oito que resistiram ao avanço dos latifúndios e das plantações de pínus integram hoje um grupo estimado em 2 milhões de descendentes de escravos vivendo em quilombos. A agricultura é a principal atividade, mas não garante o sustento de todos. Por isso a renda vem de transferências de recursos públicos, como aposentadoria e programas sociais. Não fossem os dois salários mínimos da aposentadoria de Donato e de Natália, a família muitas vezes não teria o que comer. "Hoje os tempo são outro", diz Natália. Feliz e com as mãos nas ancas.

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