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Nos idos de 1967, enquanto a turma da Tropicália avisava que todo mundo devia "ouvir aquela canção do Roberto", o jornalista Francisco Camargo e o fotógrafo Edison Jansen não estavam nem aí para o iê-iê-iê. Metidos numa farda emprestada pelo Exército Brasileiro, embarcaram no Porto de Paranaguá rumo a Saicã, no Rio Grande do Sul, para cobrir um treinamento militar. Foram três dias de tortura. Reza a lenda que o repórter teve tantos engulhos que "batizou" os Mares do Sul até desembarcar em Porto Alegre. Em terra-firme, recomposto, mostrou a que veio.

Bastaram duas semanas como correspondente de guerra para que Camargo, hoje aos 60 anos, mostrasse a graça que tinha ser o homem certo no lugar errado. Em vez de enxaqueca, teve um surto de humor. Na hora em que envelopava as matérias para enviá-las ao editor Mussa José Assis, de O Estado do Paraná, clipava bilhetinhos inocentes a respeito do efeito nefasto da culinária da caserna sobre a fauna intestinal. Era o que se podia fazer em 1967. "Ele falava de dores de barriga, gases, essas coisas. Era muito engraçado. E a gente publicava tudo num quadrinho ao lado do texto principal. Claro, os bilhetes fizeram mais sucesso que a reportagem", relata Mussa, 64 anos.

Não era a primeira vez que Francisco usava da comédia para curar cara-amarrada. Em 1963, quando estoura a maior greve de jornalistas de que se tem notícia no Paraná, havia gritos de guerra, palavras de ordem e, para surpresa geral, charges assinadas por um tal de Pancho – meninote de uniforme que era uma espécie de faz-tudo na sucursal curitibana do jornal Última Hora, do mítico Samuel Wainer. Para o amigo Edison Jansen, 63 anos, o fim do anonimato de Camargo, até então Pancho só para os íntimos, começou ali, e não em Saicã. "As charges tinham pegada, um certo humor trágico, irônico, criativo. A maior qualidade era não ser explícito. Ele sabia deixar um suspense", elogia o jornalista Walmor Marcelino, 77 anos, um dos líderes do movimento.

Walmor não esquece os tais desenhos e lembra que lhe pareceu estar escrito que Pancho ia se enturmar com a legião de cartunistas paranaenses – com folga o maior grêmio recreativo em todo o Brasil. Mas o sujeito acabou surrupiado das artes por conta de uma alergia crônica: tinha jeito com as palavras. Coçou, já viu, né. Os fãs não economizam nos adjetivos: Camargo é preciso, minucioso, interessante, cuidadoso, elegante e divertido – além de exigente de amargar. Entre uma ode e outra, fica-se sabendo que ele escreve poesias, sim senhor, todas tão bem guardadas quanto as Tábuas da Lei. "Ele nasceu para escrever. Pode não usar Armani, mas é um cara contemporâneo. Tem um texto que não envelhece. Sem dizer que é um sujeito inatacável", elogia a jornalista Lúcia Camargo, sua primeira mulher, com quem teve os filhos Fabiano, Adriana e Guilherme.

Outra proeza são os títulos, citados de cor e salteado pelos entusiastas, qual poesias de Drummond. "Curitiba Branca de Neve", manchete do Correio de Notícias por ocasião da neve de 1975, foi ele quem deu", lembra Lúcia. Pois é, aqui a fama de inatacável vem à tona. "Quem deu o título foi o Mussa, p... E foi n'O Estado do Paraná", garante Camargo.

Restabelecida a verdade dos fatos, vai-se aos que são indiscutivelmente de sua lavra. A jornalista Débora Iamkilevich – que trabalhou com Camargo no Correio – não esquece da frase estampada na Tribuna do Paraná por ocasião da morte de Tancredo Neves, em 1985: "Pobre do país que precisa de heróis", na qual citou Brecht, um de seus chapas na ala esquerda. Na Gazeta do Povo, onde trabalha desde 1993, a fama de "tituleiro" iluminado corre solta. E não só. Há quem se acotovele para beber de dois minutos de lucidez jornalística ao seu lado antes de ir para a lida. "Ele tempera as matérias. Tem sacada. Sento um pouquinho do lado dele, digo o que tenho para o dia e a minha visão das coisas muda", conta a editora de opinião Sandra Gonçalves – tiete de carteirinha ao lado do filho Daniel. Aos 9 anos, o garoto é colecionador das tiras do Pancho. E atleticano por medida compulsória – obviamente.

É público e notório que duas coisas deixam Camargo nos cascos: gente chata na sua cola e ver o Atlético perder. Quem respeita esses dois abismos de sua alma, pode ficar tranqüilo, encontrou um amigo. O rubro-negro é paixão antiga. Os Camargo viviam na Rua Engenheiros Rebouças, entre a Westphalen e a Marechal Floriano. No meio do caminho tinha o extinto Ferroviário e o Atlético. Francisco desceu a rua no sentido Água Verde e caiu nos braços de sabe-quem. Futebol, inclusive, era assunto de casa. O pai, o tenente do Exército Saladim Camargo, tinha sido zagueiro do Britânia. E o irmão Tito, bom de bola, levou o mano mais moço para jogar pelada com a turma do Última Hora. Diz Tito que Pancho jogava no ataque, "mas era meio durão em campo", eufemismo para perna-de-pau. Não virou jogador, mas graças às peladas com a moçada do jornal veio o primeiro emprego no UH e deu no que deu. "A vida do Pancho era totalmente diferente da nossa. A gente dormia cedo e ele chegava de madrugada", brinca Tito.

Enquanto o jornalismo correu sobre trilhos, o torcedor permaneceu um homem existencialmente frágil, daqueles a quem você presentearia com O desespero humano, de Kierkegaard. Só para sacanear, claro. Sua mulher, a jornalista Fátima Bortot – com quem tem a filha Clara, de 7 anos – conta que as partidas o deixam tão nervoso que ele nem acompanha pela tevê: vai para a garagem, entra no carro, e liga só para saber o placar. No dia seguinte, recomenda-se, encurte-se a conversa se não quiser ouvir resmungo como troco. Em caso de vitória na Baixada, tem o lado bom. "Ele só não é introvertido quando é para falar do Atlético", diverte-se Mussa José Assis. O jornalista paga para não falar. Que dirá aparecer – o que faz desse perfil uma bomba armada.

O gosto pelo futebol é uma marca tão forte da personalidade de Pancho que há quem recorra à mania do presidente Lula – a de sempre citar a bola, o campo e o jogador como metáfora do Brasil – para definir a posição de Camargo na imprensa paranaense. "Ele é um craque, um cracão" - diz o fotógrafo Orlando Kissner, 56 anos, sobre o homem com quem dividiu, em tempos idos, a redação, "encheu a lata" no Bar Palácio ou no Tortuga, enfrentou pescarias de lambari na região metropolitana – quando isso era possível. "Se os jornais fossem um time, o técnico ia entrar no vestiário e jogar a camisa 8 para o Camargo. Ele pode resolver qualquer problema. Distribui o jogo. Tem um texto belíssimo. Fazer jornal com ele é um prazer", desmancha-se o veterano Kissner – ao lado de Jansen, nada menos do que decano do fotojornalismo no estado.

Quanto aos chatos – há controvérsias. "Ele é meio Urtigão", delicia-se Fátima, referindo-se ao impagável personagem anti-social da Disney. "Mas o Camargo atrai [os chatos]", constata a companheira. "Na verdade, ele não tem é paciência com burrice", emenda Lúcia. O filho Fabiano Camargo, também jornalista, prefere a frase célebre do pai: "Chato ou você agüenta ou mata. Como não matou ninguém até agora, está agüentando. No máximo ele tem um mau humor matinal." Para o compadre Hélio Teixeira, também homem da imprensa, o sujeito é de bem com a vida. "Ele se previne e repete o haicai do Dalton Trevisan. ‘Deus, livra-me dos chatos’". Para o amigo Mussa, nada disso. Flor de pessoa, gentil, culto, atencioso, não tem como, até quem não é um mala pós-graduado tende a grudar no Pancho. O pobre tem todo o direito de se defender – ainda que sem muito sucesso. Não encurtasse a conversa e fechasse a cara de vez em quando, ia ficar de papo durante o expediente. Como não tolera "velhos atrasadores de jornais" – fim de papo.

A propósito. Francisco Camargo, parabéns pelos seus 40 anos de jornalismo, comemorados em 1.º de março, dia de seu primeiro registro em carteira. Saiba que a vontade de seus colegas de redação é escrever no currículo: "Trabalhei com o Pancho." Como disse uma vez o colega Arnaldo Alves da Cruz, num súbito surto de frasista: "O Camargo é uma delícia."

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