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As constatações de um sociólogo que há mais de uma década pesquisa a violência urbana e de um policial que há 25 anos vive a rotina das ruas podem surpreender o curitibano mais atento ao noticiário do mundo cão. Eles não só afirmam como assinam embaixo: Curitiba não tem gangues. Não aquelas de perfil criminoso que povoam o imaginário popular. As patotas daqui são brincadeiras de guri se comparadas aos gângsteres que deram origem ao termo nos Estados Unidos da década de 20, adotado no Brasil a partir de 1972. Numa visão generalista, costuma-se chamar de gangue todo grupo de jovens barulhentos, o que nem sempre é razoável.

Os grupos curitibanos podem ter um comportamento anti-social, mas não criminoso, diz o coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o sociólogo Pedro Bodê. Por comportamento anti-social entende-se arruaça, depredação, algazarra e outros atos quaisquer de rebeldia. Muitas vezes eles só estão reproduzindo o tratamento que recebem. Para Bodê, esses grupos são sistematicamente tratados com violência pela polícia. "Estamos socializando esses meninos com a prática da violência, o que cria um círculo vicioso. Não significa dizer que não exista criminalidade, mas isso é coisa rara nesses grupos", ressalta Bodê.

Chefe da seção de planejamento do Comando de Policiamento da Capital, o major Douglas Sabatini Dabul também considera um erro classificar de gangue todo agrupamento juvenil. A sociedade os rotula assim, de forma preconceituosa. "Se estão vestidos com roupas mais simples, são logo taxados de gangue", diz. A cor – quando predominam os negros – é outro fator discriminatório. Não raro, a Polícia Militar recebe denúncia contra supostas gangues. No fim, trata-se apenas de algazarra de jovens na esquina. O máximo da transgressão é o "tubão", uma garrafa pet de gasosa com cachaça para deixar a turma "ligada".

Segundo Bodê, há no imaginário social a representação do jovem perigoso que, em gangues, perambula pela cidade, pronto para atacar os incautos. "A invenção da gangue parece constituir-se na justificativa moral para o aumento da repressão aos jovens, da redução da menoridade penal e do endurecimento das penas", observa. Parte importante das "classes perigosas" (termo surgido na primeira metade do século XIX), o "jovem perigoso" seria também uma das justificativas para a militarização das polícias e a policialização das políticas públicas de atendimento a esse público.

Em geral, a repressão da polícia como representante do estado se processa pelo viés racial e geográfico, seja em que cidade for do Brasil. De acordo com o sociólogo, negros e moradores da periferia são o principal alvo desta repressão, que acontece a toda hora, todos os dias, em especial nas periferias das grandes cidades ou quando grupos de jovens da periferia tentam acessar os serviços de lazer e trabalho nos centros urbanos ou em outras áreas em que estejam disponíveis, mas que não são o espaço habitual de circulação destes mesmos jovens.

Quando oriundos da periferia, eles ficam marcados com a pecha discriminatória. Em Curitiba são os "vileiros", aqueles que aproveitam o "buzão" a R$ 1 no domingo para ir ao shopping. E ali muitas vezes são barrados na porta por causa das roupas. Bodê narra um desses episódios esclarecedores. Era domingo e, um após o outro, os jovens de um grupo foram impedidos de entrar num shopping do centro da cidade. De nada adiantou a intervenção do sociólogo. Eles começaram então a se agrupar na praça logo em frente. Não demorou, a Polícia Militar apareceu para dispersar a "gangue".

Esses agrupamentos juvenis estão mais para o exibicionismo do que para a violência, na constatação tanto de Bodê quanto de Dabul. Esse não é um fenômeno curitibano. No final da década de 1980, o sociólogo francês Jean Baudrillard o descrevia no livro A transparência do mal: ensaios sobre os fenômenos extremos. Para ele, a violência seria fruto não do arcaísmo, mas de uma hiper-modernidade na qual todos almejam a fama, mesmo que efêmera. Na versão curitibana, a atuação desses grupos predominantemente do sexo masculino estaria voltada menos para a violência e mais para afirmarem sua masculinidade. Ou para chamar a atenção das gatinhas no shopping.

Quando transgridem normas, o fazem movidos pelo que os estudiosos do meio chamam de dissonância cognitiva. Grosso modo, é o mundo adulto falando uma coisa e fazendo outra. A começar por exemplos domésticos, tão banais e corriqueiros quanto o hábito dos pais de criticarem as drogas ao mesmo tempo que fumam e bebem. O jovem vê isso como uma transgressão natural das normas. Aí perde a noção dos limites e dos valores positivos ou negativos, diz Bodê. Ele então vai para as ruas, testar a autoridade do estado, para saber se ela é capaz de responder como tal. Em grupo, tomam mais coragem para a empreitada.

A experiência das ruas mostrou ao major Dabul que muitas vezes nem com esse mal exemplo doméstico os jovens podem contar. Depois de 25 anos de vivência com o público juvenil nas vias públicas, ele arrisca dizer que pelo menos metade desses grupinhos é formada por adolescentes cujos pais são separados – no mínimo negligentes. Falta, nesse caso, quem imponha os limites necessários para o aprendizado. Em vez de se reunir em casa, o jovem começa a se reunir com os colegas na rua. A referência passa a ser o amigo do lado, cuja história é igual à dele. E nesse meio vai construindo sua identidade com o grupo que o acolheu, seja ele uma gangue ou não.

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