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“No Brasil, infelizmente, não há tanto incentivo (à pesquisa) quanto lá fora. E não é por falta de competência humana, mas por falta de dinheiro mesmo” | Marcelo Elias/Gazeta do Povo
“No Brasil, infelizmente, não há tanto incentivo (à pesquisa) quanto lá fora. E não é por falta de competência humana, mas por falta de dinheiro mesmo”| Foto: Marcelo Elias/Gazeta do Povo

A bióloga curitibana Lyris Martins Franco de Godoy deixou os bancos da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 1999. Dez anos depois, a pesquisadora é considerada referência mundial no estudo do sequenciamento de proteínas em células vivas. A revista norte-americana Science, em sua edição especial de fim de ano, citou o estudo de pós-doutorado de Lyris como uma das mais importantes pesquisas científicas de 2008.

Atualmente vivendo em Estocolmo, na Suécia, a bióloga trabalha no Instituto Caroline, onde estuda novas maneiras de desenvolver drogas e terapias para pacientes com câncer. Nas constantes viagens que faz ao Brasil, ela atua no Instituto de Biologia Molecular do Paraná, em pesquisas que tentam combater o parasita causador da doença de Chagas. Apesar do reconhecimento internacional, Lyris afirma que o seu trabalho vive entre a frustração de estudos que nem sempre atingem o objetivo esperado e a alegria em chegar a um resultado importante, como o que a alçou ao posto de uma das pesquisadoras mais importantes do mundo.

Sua pesquisa é considerada um passo adiante do projeto genoma. Por quê?

O projeto genoma, que durou mais de dez anos, foi uma pesquisa mundial para o sequenciamento do genoma humano. Mas, na célula de qualquer organismo, são as proteínas que realmente vão exercer uma função principal e vão controlar todas as atividades. Os genes, na verdade, só vão atuar nesse processo enviando a informação para gerar as proteínas. O sequenciamento do genoma — mesmo sendo uma pesquisa extremamente importante e que permitiu várias descobertas — não foi o suficiente para a ciência, já que existe um nível de complexidade maior do que os próprios genes dentro das células. Diante disso, viu-se a necessidade de avançar para um outro nível, de onde surgiu o estudo de abordagem Proteômica, que nada mais é do que o estudo em larga escala da expressão de proteínas.

O que exatamente é o proteoma, em que se baseou a pesquisa?

O proteoma é o conjunto de proteínas expresso nas células. Essa área é muito mais complexa e mais difícil de estudar do que o genoma. Mas, apesar de os pesquisadores saberem que o proteoma pode dar muitas respostas para a ciência, a tecnologia disponível ainda não era avançada o suficiente na década passada. Nos últimos dez anos, isso tem aumentado incrivelmente, com o lançamento de novos equipamentos e o estudo a partir de novas abordagens. E foi exatamente na ênfase em Proteômica que eu estava trabalhando — no desenvolvimento de abordagens que possam ser aplicadas em perguntas biológicas de interesse futuro. A ideia era basicamente tentar identificar o maior número de proteínas possíveis, que estão presentes em determinado organismo ou célula num dado momento. Na verdade, não adianta identificar só as cem proteínas mais expressas, porque não vai haver uma resposta do quadro total estudado. Então, a intenção era se aprofundar ao máximo na detecção de proteínas, para que a mesma técnica possa ser aplicada em várias pesquisas. Afinal, quase tudo no organismo — pelo menos a maior parte — acontece em nível de proteína.

Como foi feito o estudo?

O laboratório onde eu fiz o pós-doutorado na Alemanha (Instituto Max Planck) é o líder mundial no estudo de proteoma. O que eu fiz foi utilizar leveduras (organismos responsáveis pela fermentação do pão) como modelo de estudo, para chegar ao quadro completo de proteínas desse organismo. E isso acabou acontecendo, depois de vários anos e muitas tentativas. Foi a primeira vez que um pesquisador obteve o sequenciamento completo do proteoma de um organismo. Apesar de a levedura ter sido modelo em diversas pesquisas anteriores, ninguém havia conseguido detectar todas as proteínas num mesmo experimento.Na sua opinião, o que foi determinante para que a pesquisa fosse citada na Science como uma das mais importantes de 2008?

Existem várias tecnologias que estão estudando o proteoma há muitos anos, mas, em relação à minha pesquisa, acredito que tenha sido uma questão de quantidade e qualidade. Eu e meus colegas avançamos até a um nível de profundidade em que a Biologia nunca havia chegado antes. Nunca ninguém tinha conseguido detectar o quadro completo de proteínas de um organismo. A pesquisa ganhou esse destaque porque foi a primeira vez em que se definiu uma maneira de atingir esse nível, uma abordagem que te permite aplicar o mesmo método com chances de obter exatamente as respostas que você está procurando.

Em que casos suas descobertas podem ser aplicadas no Brasil?

Antes de ir para a Alemanha, eu já estudava o proteoma em parceria com o Instituto Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, que tem uma extensão aqui em Curitiba — o Instituto de Biologia Molecular do Paraná, atual Instituto Carlos Chagas. Como a fundação trabalha com doenças tropicais, eu estava aplicando as mesmas técnicas para estudar o desenvolvimento do parasita da doença de Chagas e tentar entender o que faz com que ele se torne infectivo. Se encontrarmos a proteína responsável por essa aquisição de infectividade, poderá ser possível produzir uma droga para bloquear a ação dessa proteína específica. Essa droga também pode ser usada no tratamento dos doentes, em forma de vacina por exemplo, para impedir que o parasita infecte a pessoa que foi imunizada. Fazer essa pesquisa no Brasil é ainda mais importante porque teremos respostas para doenças típicas do país, que poucos pesquisadores estudam por ocorrerem na América Latina. Além disso, o Instituto Oswaldo Cruz conseguiu verbas para adquirir os mesmos equipamentos que eu utilizava na Alemanha. Até metade do ano, o material deve chegar a Curitiba, algo inédito no país.

Em quanto tempo a pesquisa terá resultados em seres humanos?

O nível de complexidade de uma célula humana é muito maior do que a de uma levedura. Mas as pesquisas estão evoluindo e, dentro de uns cinco anos talvez, poderemos chegar ao sequenciamento das proteínas em humanos. Hoje, já se consegue identificar um número maior de proteínas nas células humanas do que eu consegui nas leveduras, mas, em termos de porcentagem, as pesquisas não chegam ao mesmo patamar. Diversas publicações afirmam que a parte de Proteômica ainda é muito superficial em relação às células humanas e que os pesquisadores estão vendo apenas a ponta do iceberg. A maior dificuldade é que esse é um tipo de pesquisa cega. Você não faz uma pergunta específica, mas sim dá um estímulo ao organismo pesquisado e, depois, tenta interpretar o que aconteceu. Tenta entender o que está aumentando, o que está diminuindo, quem interage com quem, quem controla quem — como se fosse um circuito de computador. Nos pacientes com câncer, por exemplo, todos têm o mesmo diagnóstico, mas metade responde à terapia e o restante não. Só que a ciência ainda não sabe o porquê. Por isso, para desenvolver novas drogas, é preciso saber por que as outras não foram eficientes, por que cada paciente reagiu à terapia de uma maneira. São essas perguntas que as pesquisas do proteoma poderão responder no futuro.

Como você analisa as pesquisas científicas no Brasil?

No Brasil, infelizmente, não há tanto incentivo quanto lá fora. E não é por falta de competência humana, mas por falta de dinheiro mesmo. Esse equipamento do proteoma que virá para Curitiba, por exemplo, custa US$ 1 milhão. Não é qualquer laboratório que consegue ter todo esse dinheiro, e, na pesquisa científica de proteoma, a tecnologia faz muita diferença. Por isso, a compra desse material foi uma vitória muito grande, que vai colocar Curitiba no nível de laboratórios internacionais, sem ficar devendo em nada. Mas, obviamente, é um caso raro.

Como é fazer um trabalho em que os resultados podem demorar dez anos ou mais para aparecer?

É um pouco complicado, já que, em geral, as pessoas são mais imediatistas. É até por isso que, muitas vezes, é muito difícil conseguir verba, porque estamos falando de um investimento a longo prazo. Mas pesquisas científicas funcionam assim: cada pequena descoberta que você consegue vai se acumulando e se encaixando para se chegar a um resultado maior no final do processo. Como pessoa, você também precisa aprender a lidar com muita frustração, porque a ciência nunca é tão simples como se imagina. Você pode desenhar um experimento perfeito, mas, nem sempre, ele vai funcionar como você imaginou no início. Muitas vezes, a tecnologia também é um adversário. Em determinados casos, você sabe o que tem que fazer para responder a determinada pergunta, mas não dispõe do material para fazer aquilo. Mas, ao mesmo tempo, é muito gratificante quando você consegue atingir os resultados esperados. Acho que falta as pessoas entenderem um pouco isso. Para a população em geral, parece que os pesquisadores simplesmente não fazem nada, afinal você não vê o resultado diário do trabalho. Não é uma coisa que você começa e determina um prazo para terminar. A única maneira de mudar esse pensamento é continuar pesquisando, porque, uma hora, a gente acerta. Além disso, a minha pesquisa ainda não é o suficiente. Alguém vai pegar o que eu fiz e vai desenvolver isso mais adiante.

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