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“Aparentemente, passados 116 anos, o fato [Cerco da Lapa] só existe nos relatos históricos. Porém, apenas se inicia uma conversa entre os descendentes de uma ou outra facção, fatos são cochichados e até os olhos se enchem de lágrimas à evocação das lembranças que vêm sendo transmitidas de geração em geração.”
Maria Thereza Lacerda, historiadora e escritora |
“Aparentemente, passados 116 anos, o fato [Cerco da Lapa] só existe nos relatos históricos. Porém, apenas se inicia uma conversa entre os descendentes de uma ou outra facção, fatos são cochichados e até os olhos se enchem de lágrimas à evocação das lembranças que vêm sendo transmitidas de geração em geração.” Maria Thereza Lacerda, historiadora e escritora| Foto:

Ainda sem resposta

Alguns pontos que até hoje a História não conseguiu esclarecer efetivamente:

- Se pensarmos friamente, é difícil entender por que os maragatos pararam 26 dias em combate na Lapa se o objetivo deles era chegar ao Rio de Janeiro.

- Gumercindo Saraiva (maragato) teria uma inimizade com o general Carneiro (pica-pau) e teria parado na Lapa (ao invés de passar ao redor da cidade) apenas para matá-lo?

- Quem deu o tiro fatal no então coronel Carneiro (depois elevado à patente de general)? Há quem diga que durante uma discussão e tentativa de acordo, pica-paus teriam atirado e acertado, sem querer, Carneiro. Será mesmo?

- Por que os lapeanos pagaram (com mortes) por uma guerra que não era deles?

- Até hoje acusa-se alguns pica-paus de terem roubado dinheiro durante a revolução, mas não há provas.

Fonte: Maria Thereza Lacerda.

Lenços

No RS, "rivalidade" é simbólica

No estado onde os maragatos fizeram o levante contra os pica-paus do Rio de Janeiro, as desavenças entre as duas facções ficaram enterradas no passado. O Rio Grande do Sul teria hoje uma divisão apenas simbolista da revolução, segundo o historiador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Luiz Alberto Grijó. "O movimento tradicionalista [os CTGs] se apropriou da ideia, mas nem isso hoje é levado a sério. Dizem que os descendentes de pica-paus portam lenço branco (com a pilcha) e os maragatos levam um lenço vermelho. Mas atualmente já ouço falar que os descendentes misturam os lenços, bebem juntos e todos estão tranquilos. Não existe mais esta rivalidade", diz.

Grijó lembra que o lenço é realmente um símbolo, porque houve uma época em que os pica-paus usavam o acessório na cor verde, que depois passou a ser branco. "Acredito que hoje nada mais disso tem valor."

Uma das explicações para o fim da rivalidade pode estar no fato de que alguns maragatos e pica-paus, por volta da década de 1920 e 1930, se uniram politicamente para formar a Aliança Libertadora que depois virou o Partido Libertador. "Foi uma espécie de acordo entre os dois grupos", afirma Grijó. (PM)

Historicamente as batalhas costumam ter uma data oficial de começo e fim. No caso da Re­­volução Federalista, ela ocorreu de 1893 a 1895. Mas mesmo passados 115 anos, a impressão que se tem é de que a rivalidade entre maragatos (soldados rebeldes) e pica-paus (militares legalistas) ainda não terminou. "A briga continua por causa da tradição oral, das histórias passadas de pai para filho e não morre porque netos e bisnetos recontam os fatos. A raiva permanece mesmo que às escondidas, aos cochichos. Digo que os dois lados estão certos e errados", afirma a escritora e historiadora Maria Thereza Lacerda, que lançou este ano o projeto de paz entre os dois grupos, batizado de História do Cerco da Lapa. De fato parece que ela meteu a mão em um vespeiro – é como Maria Thereza define as desavenças que tem ouvido entre famílias descendentes tanto de maragatos como de pica-paus. O Cerco (1894) é apenas um pedaço dos episódios da Re­­volução Federalista, mas deixou marcas profundas na pequena população da Lapa. Maria Thereza conta que há uma família de herdeiros de maragatos que quer trazer o parente morto no Cerco – atualmente enterrado no Rio Grande do Sul – para ficar junto aos pica-paus no Panteon dos Heroes. A questão é que no Panteon estão enterrados apenas pica-paus, como o general Car­neiro e, segundo Maria Thereza, a discussão na Lapa é a de que os dois rivais não poderiam estar enterrados lado a lado.

E não para por aí. A historiadora diz ter ouvido de uma família que uma noiva, que era filha de maragato, não poderia casar com um noivo descendente de pica-pau. "A frase foi dita em pleno dia do casamento. Isso não se faz", comenta. Até para erguer um monumento na Lapa em homenagem aos maragatos tem sido difícil. "Havia um projeto, mas não saiu do papel", diz.

O retrato traçado pela neta de um coronel pica-pau (sim, Maria Thereza é descendente de pica-pau) assusta quem está longe do assunto. "Parece bobagem, pois é estranho pensar que depois de tanto tempo as pessoas tenham picuinhas por causa de uma revolução do passado. Eu sofri hostilidades sem saber por quê. Fui atrás da história, porque acredito que somente sabendo a verdade teremos a libertação. Os dois grupos tinham seus motivos e devemos respeitá-los", afirma. Maria Thereza lembra que, no ano passado, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2009 como o Ano Internacional da Reconciliação. "Quando vi judeus e palestinos em uma mesma orquestra imaginei que maragatos e pica-paus poderiam sentar à mesma mesa também, sem desavenças."

Alguns passos já foram dados. Em fevereiro deste ano, período em que é lembrado o ano da morte do general Carneiro, a encenação do Cerco da Lapa mudou de lugar: ao invés de ser na frente do Panteon, foi no Teatro São João. No final da peça, uma criança vestida de maragato e outra de pica-pau soltaram bexigas brancas pela paz. "Uma epígrafe do escritor Jorge Luis Borges resume tudo: modificar o passado não é modificar um só fato, é amenizar suas consequências que tendem a ser infinitas", afirma Maria Thereza. O projeto de paz lançado pela historiadora – em parceria com a prefeitura da Lapa (secretarias de Educação e Cultura) – incluiu ainda um aprofundamento no ensino de História nas escolas, principalmente sobre o Cerco da Lapa, mostrando sempre as motivações que levaram pica-paus e maragatos à revolução.

Em junho deste ano aconteceu uma pequena demonstração de que a bandeira branca está sendo erguida definitivamente na Lapa. Uma placa em homenagem aos dois grupos combatentes foi pendurada do lado de fora do Panteon. Na ocasião, a descendente de pica-pau Maria Thereza discursou ao lado de um maragato – Walter Jobim – que veio para representar o seu irmão ma­­ragato, o ministro da Defesa, Nelson Jobim.

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