Ministros Gilmar Mendes e Kassio Nunes Marques, do STF.| Foto: Nelson Jr./SCO/STF
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Pelo menos três pontos passaram "despercebidos" na deliberação do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 811 sobre a liberdade religiosa. A Corte decidiu que decretos estaduais e municipais podem proibir a realização de cultos, missas e demais atividades religiosas presenciais durante a pandemia.

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Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam que o voto do ministro Gilmar Mendes, relator da ADPF em questão, deixou de levar em conta aspectos fundamentais sobre a liberdade religiosa. Como, por exemplo, o entendimento de que muitos credos religiosos só exercem seu direito religioso na maneira como expressam isso externamente e o limite para as restrições impostas.

1. Liberdade religiosa é a expressão da liberdade de crença

Em seu voto, Mendes argumenta sobre a chamada "dúplice dimensão do direito à liberdade religiosa", considerada como consenso no direito internacional. Isso é, segundo ele, esse direito seria composto de duas dimensões: a interna (forum internum) e a externa (forum externum). Enquanto a primeira consiste em uma liberdade absoluta e de foro íntimo de crença, a última, por outro lado, diz respeito mais propriamente à liberdade de confissão e à liberdade de culto.

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"Nessa dimensão externa da liberdade religiosa, a proteção jurídico-constitucional da liberdade de culto não se limita à fé religiosa como pura ‘questão privada’, mas comprova-se precisamente quando a fé é vivida publicamente, encontrando por isso resistências sociais ou legais", sustentou Mendes.

No entendimento de alguns especialistas, a grande maioria dos credos religiosos só exerce seu direito religioso na maneira como expressam isso externamente. Como explica o advogado Thiago Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), a liberdade religiosa é a expressão da liberdade de crença, é o meio pela qual a fé se expressa no mundo. "Isso se dá, em especial, através da prática do culto - considerado o núcleo essencial da liberdade religiosa. Uma vez que ele é a essência, se você o proíbe, proíbe, portanto, a própria liberdade religiosa", diz. "A liberdade de crença sem liberdade de religiosa é ineficaz".

Embora a maior parte das discussões se debruce sobre igrejas de matriz cristã, o especialista cita situações que envolvem outros credos religiosos: "Um babalorixá ou pai de santo não incorpora uma entidade via online. É preciso do terreiro e de pessoas para ter o ápice da fé. Também é assim para a religião espírita, com as sessões mediúnicas", afirma.

Em sua decisão, Mendes ainda cita que a dimensão interna e a externa da religião têm "níveis de proteção distintos". Na opinião de André Borges Uliano, professor de Direito Constitucional e procurador do Ministério Público Federal (MPF), isso não possibilitaria dizer que a proteção constitucional e internacional ao "aspecto externo" seja baixa ou irrelevante.

"Pelo contrário, o aspecto externo é, em várias religiões, constitutivo do exercício da religião, de modo que a ofensa ao aspecto externo atinge a liberdade religiosa em si. Não por outro motivo, a Constituição não protege apenas a "liberdade interna", mas também os locais de culto e as liturgias", explica o especialista.

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Do ponto de vista filosófico, a tentativa de Mendes de separar o aspecto "interno" e "externo" da liberdade religiosa acabou por desaguar em um "dualismo". Essa é a opinião do jurista e pós-doutor em Filosofia e História da Educação pela Unicamp André Gonçalves Fernandes. Segundo ele, o ministro, ao distanciar essas duas dimensões, acabou por "minar aspectos de uma única realidade".

"As duas dimensões da religião de fato existem, mas não são realidades que se diferenciam substancialmente ou se contrapõem, como o ministro dá a entender em seu voto. Pelo contrário, elas se complementam como duas vertentes de um mesmo conceito. Mas, baseada em uma doutrina europeia, a dualidade feita pelo ministro acaba por redundar em um verdadeiro dualismo", afirma. "E isso se afasta da realidade das religiões. Trata-se de uma só realidade complexa, que une elementos divinos e humanos. Todas as religiões possuem uma manifestação externa inequívoca, parte indelével da realidade complexa que une elementos internos e externos".

Ainda de acordo com o especialista, não é possível haver, dentro da realidade religiosa, uma "espécie de dialética entre o elemento externo e interno". Isso não pode ser simplesmente "resolvido" pela eliminação de uma de suas dimensões, como fez o ministro, aponta Fernandes.

"É preciso uma síntese integradora dos dois aspectos. Limitar seu aspecto jurídico, que é justamente o que essa dualidade acaba por fazer, seria ficar no esqueleto da realidade da dimensão religiosa. Afirmar apenas a existência do aspecto espiritual seria como criar uma espécie de comunidade sem nervo, ordem ou segurança".

André Gonçalves Fernandes, jurista e pós-doutor em Filosofia e História da Educação pela Unicamp.
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2. É possível limitar. Mas até onde?

Embora defenda que o núcleo da liberdade religiosa - meio pelo qual se expressa a fé, crença interior - deva ser preservado, Vieira entende ser possível fixar balizas mínimas em momentos excepcionais como a pandemia. Limites podem ser definidos, como já preveem os protocolos de segurança sanitária, mas sob a condição de que eles não firam a essência da liberdade religiosa.

"É possível limitar o que é extremamente necessário. Se limitar demais, o indivíduo perde seu direito de liberdade religiosa, ela deixa de existir. O limite deve se dar, no máximo, até um ponto que as pessoas possam usufruir da liberdade religiosa. Caso contrário, sua crença será abalada", diz ele. "Se o cristão não pode comungar, não pode participar da Eucaristia, uma vez que isso só se faz presencialmente, sua fé, de algum modo, é abalada".

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 18, prevê que "a liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas à limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas". "Somos totalmente favoráveis aos protocolos sanitários, incluindo a limitação de pessoas. A proibição de excessos deve acontecer, mas preservando o conteúdo essencial da liberdade religiosa", diz Vieira.

Na mesma linha, Uliano explica que o "fato de o exercício da liberdade religiosa admitir restrições (por exemplo, não se admite sacrifícios humanos em nome da liberdade religiosa) não quer dizer que ele possa ser esvaziado". "No contexto da pandemia, é lógico que a ordem de fechamento representa uma restrição extremamente severa. Há mecanismos para compatibilizar os bens, impondo restrições, como distanciamento social e outras normas de higiene, sem atingir o núcleo do direito, esvaziando-o por completo", afirma.

"A liberdade externa sujeita-se a alguns limites. Desde que essas limitações obedeçam a certos critérios, como a necessidade, a proporcionalidade, a temporalidade. Devem ser medidas excepcionais e o dano ao direito deve ser o menor possível. Apenas o necessário para o fim que se deseja atingir. Neste caso, a saúde pública", afirma o advogado Felipe Augusto Carvalho, diretor-executivo da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure). Segundo ele, uma vez cerceada a dimensão externa, e o núcleo do exercício da fé, existe abuso da liberdade religiosa como um todo.

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Os juristas sugerem, durante a situação pandêmica, o que é chamado de caminho de harmonização entre as demandas sanitárias e as demandas de proteção da liberdade religiosa. "O poder público, inclusive, deve buscar essa harmonização, com critérios baseados na ciência, fundamentados nos órgãos de saúde, é possível adotar caminhos que não venham a suspender completamente a liberdade de culto, por tratar-se de um direito fundamental", afirma Carvalho.

O princípio da cooperação entre Estado e religião deve ser prezado, em especial, porque ambos estão voltados ao bem comum. Mas intervenções indevidas geram "desequilíbrio". "Esse zelo do Estado em querer criar normatividade para o exercício da religião acaba virando justamente uma imposição de limites que vão além da sua natural competência, inclusive, da sua capacidade própria de legislar sobre o assunto", diz Fernandes.

"É importante equacionar e ponderar, sem dúvida alguma. Contudo, o que está sendo feito é pura abolição de uma faceta fundamental da dimensão religiosa, isso é, a faceta externa".

André Gonçalves Fernandes, jurista e pós-doutor em Filosofia e História da Educação pela Unicamp

3. Estado não pode ditar a maneira do culto

Dias antes da deliberação acerca da ADPF 881, o ministro Marco Aurélio, em entrevista ao portal Metrópoles, sugeriu que os religiosos "rezassem em casa". Ele repetiu o mesmo argumento durante seu voto nesse julgamento. A declaração, para Vieira, demonstra grave interferência do magistrado no âmbito privado.

"O Estado é laico, ele não pode dizer como as pessoas devem prestar culto, o que é importante ou não", afirma o especialista. "Para os católicos, o papa é quem pode dizer o que os fiéis devem fazer, se devem rezar em casa ou não. O ministro pode deliberar sobre questões civis, políticas, mas dizer como o fiel tem que se portar na matéria de fé".

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O diretor-executivo da Anajure corrobora com a afirmação, e lembra que ao Estado não compete dizer que aspectos de uma doutrina podem ou não ser substituídos satisfatoriamente por uma outra atividade que não precise da coletividade. "Nossa Constituição e o próprio Código Civil estabelecem a liberdade das organizações religiosas de tratarem dos assuntos internos, especialmente dos aspectos doutrinários e de rituais. Os líderes das organizações é que devem dizer se o sacramento A, B ou C podem ser substituídos por uma outra atividade", diz. "A organização religiosa tem essa autonomia. Não se pode impor como uma doutrina deve ser realizada".

"Organizações religiosas têm, sim, adotado postura de colaboração, de cuidado. Elas estão dispostas a colaborar, pois compreendem a gravidade do momento. Muitos líderes, inclusive, têm, voluntariamente, suspendido as celebrações, por entenderem que estamos num contexto de pandemia. Mas precisamos garantir que essas decisões sejam tomadas pelos grupos religiosos, e não pelo Estado", afirma Augusto Carvalho.

É importante corrigir esse 'jurisdicismo' que está como pano de fundo da decisão do STF, aponta Fernandes. "Essa visão deturpada de que tudo que é relativo à atividade religiosa é secundário está fundamentada em uma visão anticlerical da realidade. É importante contar com a abertura das pessoas que decidem, quer seja do Executivo, Legislativo ou Judiciário, à dimensão religiosa inescrutável e, ao mesmo tempo, inalienável do cidadão", diz ele.

Do ponto de vista filosófico, o jurista e pós-doutor em Filosofia e História da Educação pela Unicamp explica que, embora a autonomia do Estado seja plena na esfera terrena, constituindo aquilo que se conhece por ordem autonômica, ao mesmo tempo, nas relações entre Estado e Igreja, há de se considerar uma “relação intrínseca com a ordem transcendente, que é a religiosa”. “Essa ordem transcendente é uma ordem formada por seres criados e ligados à transcendência religiosa, seja ela qual for. O Estado está vinculado, por sua própria natureza, à ordem transcendente, na qual se encontram circunscritas as igrejas”.

Ainda, do ângulo da sociologia, o especialista lembra que o poder estatal, incluindo o Judiciário, é instrumento da sociedade para alcançar o "bem comum das pessoas que a constitui". "Essas pessoas reclamam serem consideradas tendentes ao seu fim último como seres religiosos. E, consequentemente, o Estado, por servir essas pessoas, deve preocupar-se em cooperar na satisfação das necessidades religiosas de seu povo", explica Fernandes.

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Esses pressupostos implicam, portanto, na necessidade de que o Estado mantenha uma relação de harmonia com a ordem transcendente. Na prática, com a religião, representada pelas igrejas e diferentes denominações.

O voto do ministro Gilmar Mendes na ADPF 811:

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