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Faichecleres: banda agora conta com um novo baixista, Ricardo Junior (primeiro à direita). | Divulgação
Faichecleres: banda agora conta com um novo baixista, Ricardo Junior (primeiro à direita).| Foto: Divulgação

O umbigo de Curitiba mede 1,6 mil metros quadrados e atende pelo nome de Pracinha do Batel. Sua defesa tem rendido dias de fúria à cidade, como não se via desde os idos de 1972, quando a Rua XV virou calçadão e muita gente pôs a boca no mundo. Caso sobreviva ao projeto salomônico que quer dividi-la em duas partes, unindo as ruas Carneiro Lobo e Costa Carvalho, o minifúndio mais disputado da capital vai entrar para a galeria das praças defendidas com braço forte. São 900 ao todo – mas algumas são feito fortalezas medievais. Na cidade cujos moradores têm fama de ser de pouca conversa, pequenos logradouros criados para o povo se encontrar já renderam grandes batalhas. Pena não figurarem num livro de História: teriam muito a ensinar.

Nem é preciso viajar no túnel do tempo para encontrá-las. Há dois anos, um jardinete entre as ruas Paraguaçu e Dr. Goulin – onde o Hugo Lange se encontra com o Alto da Glória – levou o povo à rebelião. Um projeto de binário transformaria a pacata Goulin numa paralela da Augusto Stresser, levando o jardim para a tumba. Não teve negociação – o binário foi engavetado. Pela mesma época, uma área de lazer fez com que parte dos aposentados do Juvevê deixasse o chinelo de flanela e fosse à luta. Hoje, quem sobe a Rua José de Alencar na hora do rush pode ver o resultado: enquanto milhares camelam para chegar ao Cabral, a rapaziada se diverte nas quadras de esporte da Praça Brigadeiro Eppinghaus.

A mais ou menos 15 quilômetros dessas duas praças, uma outra – a escondida Praça Nelson Saternaski Monteiro, na Vila São Pedro, bandas do Xaxim – também se tornou bandeira de uma comunidade. Há dois anos, os moradores não deixam a prefeitura dormir no ponto, exigindo que o único espaço de lazer da rendondeza tenha o que merece: arborização, canchas poliesportivas, aparelhos de ginástica, banheiro público, pista de corrida e uma concha acústica. Pelos cálculos dos líderes comunitários, 50% já foi conseguido. A outra metade virá nem que seja no grito.

As quatro sagas de praça que unem Batel, Juvevê, Hugo Lange e Xaxim são resultado de lutas populares, uma expressão que muitos jurariam descansar em paz em algum capítulo da década de 60 ou 70. Mas não é o que acontece. Numa época em que muita gente jura que o MST é o único e o último sobrevivente dos movimentos sociais organizados, manifestações urbanas pipocam aqui e ali – avisando que alguma coisa está fora de ordem. A começar pelas próprias manifestações.

Em se tratando de grandes cidades, o povo vai à forra "fora de forma". Mas vai. Os números não mentem. A Federação de Associação de Moradores de Curitiba agrega 600 entidades sociais Dessas, 350 são associações de moradores. Divididas pelos 75 bairros da cidade, ficam 4,5 grupos do gênero por bairro. Sem falar nos incontáveis núcleos informais, dissidentes e igrejas que são boas de briga .

A própria prefeitura municipal já sentiu bater na porta a súbita febre de participação popular. A Secretaria Municipal de Planejamento e Coordenação estima que do ano passado para cá cresceu em 23% o número de curitibanos que bateram ponto em audiências públicas promovidas pelo poder público. De janeiro até agora foram 32 audiências, com média de 300 participantes cada – somando algo em torno de 9,5 mil cidadãos reunidos em assembléia.

É certo que as audiências ainda carecem da figura do cidadão desinteressado – o seu João e a dona Maria que não fazem parte de nenhuma entidade de classe ou do comércio –, mas não há como negar que esses encontros estão contribuindo para mexer com os hábitos da população. Em paralelo aos encontros, cresce o número de curitibanos que passam a mão no telefone e ligam para a prefeitura – algo em torno de 100 a 170 mil pessoas por mês. Só para a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) foram 11 mil sugestões, oriundas de 4 mil pessoas –, de acordo com dados da PMC. Resta saber qual é cara da nova turma da passeata.

Segundo o engenheiro Omar Sabbag Filho, 53 anos, assessor-técnico da Secretaria Municipal de Planejamento e Coordenação, já é possível observar algumas características regionais. "Quanto mais longe do Centro, mais aumentam as reivindicações por infra-estrutura", ilustra, sobre o que observou nos debates que em torno da LDO, sob sua assessoria.

Por infra-estrutura, leia-se caminhão de som, panelaço, quando não pneus queimados, barricadas na BR e um vereador – ou candidato a – por trás da massa. Difícil a semana em que uma manifestação não venha à tona, muitas delas movidas por dramas humanos, como assassinatos e atropelamentos. Diante de fatos dessa monta, a Pracinha do Batel fica parecendo uma conversa tola, mas não há muita lógica no que vai ou não vai levar o povo a soltar o gogó na avenida. Depende da tal soma de fatores: envolvimento de grupos organizados, destaque na mídia e poder de fogo. É onde mora o perigo.

Para Omar Sabbag – que acompanha atento a Curitiba que sai da casca do ovo –, o exercício de democracia de uma assembléia popular passa pelos interesses ideológicos e pelo pragmatismo. Em miúdos – às vezes, desviar o olho do quintal de casa é mais difícil do que dar a volta ao mundo. "Muitas vezes, a resposta do poder público é uma negativa. Há várias instâncias da sociedade que também devem ajudar a resolver conflitos, como a Câmara dos Vereadores", explica.

Para o ex-prefeito Ivo Arzua, 82 anos, não é bem assim. O homem que se tornou um dos políticos mais populares da história da cidade administrou na base da consulta popular, mesmo sendo atropelado, em 1964, pelo regime militar. Foram anos barulhentos, literalmente. De 1962 a 1967, a capital ganhou 1.213 metros de asfalto, 400 desapropriações e demolições – entre elas o Cine Luz da Emiliano Perneta – e uma reunião popular atrás da outra, apesar do lema de Arzua ser "mais ação e menos conversa."

"Democracia é assim mesmo. Tem de correr risco. Do debate deve sair a verdade. E temos de ir atrás dele. Naquela época, fomos à luta, entramos dentro das associações. Tem de discutir o tempo inteiro. Por que os políticos não vão aos colégios, falar com a juventude?", provoca o veterano – para quem os dias de hoje são menos dados à conversa.

"Conversar é fácil", alardeia. Exemplos não lhe faltam. Na década de 60, lojistas ficaram nos cascos com o alargamento da Avenida Marechal Deodoro. Arzua deu uma cópia do projeto para cada um e partiu para o corpo a corpo. Amansou as feras – mas tinha um prédio imenso na esquina da Mariano Torres, e imóveis antigos na Emiliano Perneta que não podiam vir abaixo para que Curitiba tivesse sua grande avenida. "Se não recuássemos, a prefeitura quebrava", brinca. Não quebrou, a Marechal ficou do jeito que é – afina, alarga, afina. Foi-se o Luz, mas ficou a Belas Artes, o Instituto de Educação. São caminhos certos por ruas tortas.

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