• Carregando...
Vista Geral do “Carmo”: convivência pacífica com o terminal | Cezar Machado/ Gazeta do Povo
Vista Geral do “Carmo”: convivência pacífica com o terminal| Foto: Cezar Machado/ Gazeta do Povo

Perfil

Padre "do terminal" cultiva orquídeas, motos e é bom de gestão

"Cheguei aqui em 23 de maio de 1997", sabe de cor o sacerdote Luiz Alberto Kleina, reitor do Santuário de Nossa Senhora do Carmo. Naquela época, podia ir ao terminal, em frente, sem ser percebido. Hoje, não mais. Se coloca os pés para fora, demora horas a voltar para casa, tamanha sua popularidade.

Um alerta. Melhor não enquadrá-lo na categoria "padre midiático". Kleina se formou em Comunicação Social pela UFPR e se sai bem com rádio e tevê. É dono de um discurso claro e cativante. Jovial, ainda mantém a jaqueta do couro dos tempos de motociclista, seu propalado hobby. Tem três livros publicados (Reflexões de libertação, com o padre Chiquito; Deus quer mais de mim e Momentos de espiritualidade). Mesmo assim, se encaixa melhor entre os que "sacaram" que é preciso ciência para transformar a cidade em aliada e não em inimiga da religião. Não é padre cantor – é o padre do terminal.

Os fiéis estão "sem tempo", "em trânsito", têm "outros apelos", mas continuam desejando participar e colaborar. É sua crença. Vão fazê-lo, se encontrarem comunidades nas quais sintam que darão conta da piedade, da vida comunitária e das demais imperativos cotidianos.

Com perdão ao trocadilho com o livro que trouxe encrencas ao ex-frei Leonardo Boff, Kleina é um sujeito com "carisma e poder". Concilia o espírito do gestor com o de pastor que entende seus fiéis circulam numa cidade grande e violenta. Querem rezar, mas também lanchar. Querem ajudar, mas voltar para casa na hora certa. "Recebemos gente de todos os lados da cidade. Não prego milagres. As pessoas buscam amparo na aflição", diz, ao lembrar a primeira vez que botou os olhos no terminal – "entendi que tinha de ser um local de peregrinação".

Isso tem um preço. Padre Kleina descansa quando muito um dia por semana. Mesmo assoberbado, arruma "horinhas de descuido" para cuidar de um orquidário, no quintal de sua casa, dando sobrevida aos vasos doados à Virgem. Está longe de fazer o tipo de vigário que anda com as chaves da paróquia na cintura. "Eu delego", resume sobre os modos de administrador que antes de desgostar, acabaram por se tornar um elogio.

Cartas

Mensagens formam arquivo de graças

A estudante Francielle Lopes, 21 anos, é funcionária do Santuário do Carmo. Atua no Setor Pastoral. Uma de suas tarefas é digitar a centena de cartas escritas à mão que todos os meses. São dirigidas ao padre Luiz Alberto Kleina e testemunham graças alcançadas. Num único ano, são arquivadas 1,2 mil mensagens, o que inclui alguns e-mails e até textos escritos em guardanapos. A cada quarta-feira, uma delas é lida nas novenas. O arquivamento teve início em 2002.

Cabe a Fran, como é chamada, dividir as cartas por assunto – em pastas digitais como "Cura de câncer", "briga familiar", "drogadição". Entre as mais-mais estão os relatos sobre desemprego e depressão.

Serviço

60 anos do Santuário de Nossa Senhora do Carmo. Missas festivas na sexta-feira, às 19 horas; sábado, às 15h30 e domingo, às 9 horas.

  • Quarta é dia de novena: horários e serviços rigorosos para fiéis
  • Francielle e as cartas manuscritas: digitação e catalogação
  • Kleina: ação do padre merece
  • Uma quarta-feira no Santuário Nossa Senhora do Carmo: templo recebe em média de mil pessoas a cada uma das 13 novenas do dia. Organizadores dizem que teriam público mesmo que abrissem mais horários
  • Criada em 1954, paróquia do Carmo foi elevada a santuário em 2001. Templo foi todo reconstruído nos anos seguintes, com projeto do arquiteto Mauro Magnabosco. O
  • O Santuário do Carmo visto do terminal. Integração entre os dois espaços estava fadado ao fracasso. Ao chegar, em 1997, o padre Luiz Alberto Kleina enxergou a possibilidade de fazer dali um centro de peregrinação. Hoje, a cada mês, só nas quartas-feiras de novenas o local vê passar 60 mil pessoas.
  • A paroquiana Arminda Ignácio, 68 anos, é a responsável pelos já famosos pastéis de carne e de banana vendidos no santuário, às quartas-feiras. A torta de requeijão também está entre as preferidas. As vendas só crescem – hoje estão na casa das 1,5 mil unidades de pastel por dia de novena. Arminda lidera um grupo de até 20 voluntárias. Filas se formam, mas há local para sentar e comer com tranquilidade
  • Padre Luiz Alberto Kleina no orquidário que criou no jardim da casa paroquial. Uma vez por mês, fiéis levam vasos de flores à Virgem do Carmo, agradecendo as graças recebidas. As orquídeas são levadas até a estufa e depois devolvidas ao templo. Altar abriga um
  • Manifestações de fé explícitas são sentidas em todo o santuário – além do interior, há uma gruta, um Cristo Redentor, um cruzeiro, espaço para acender velas e capela do Santíssimo Sacramento
  • Cida Novacki, 55 anos, é um dos 300 voluntários que trabalham no santuário. Outros 300 estão divididos nas demais 23 pastorais mantidas pela paróquia. Cida se aproximou do templo em 2000, quando perdeu a mãe. Hoje ajuda na lojinha de artigos religiosos. O
  • Fieis que alcançaram graças as depositam seus agradecimentos no gradil da frente do Santuário do Carmo. Votos trazem louvores
  • Ofício religioso segue a tradição popular – com seus responsórios e cânticos -, mas a liturgia é solene. Uso de incenso e pequenas procissões do Santíssimo Sacramento são intercaladas com bênçãos de chaves de casa e demais objetos pessoais, a depender do tema de cada novenário – como se chama a série de nove encontros
  • Fiel chora durante uma das novenas da tarde na última quarta-feira
  • Francielle Lopes, 21 anos, do Setor Pastoral, digita carta por carta enviada pelos fiéis. A média de 100 cartas por mês. Todas são endereçadas ao padre Kleina e são arquivadas. Esses documentos – com identidade do autor preservada – podem servir para futuros pesquisadores de religiosidade

No próximo sábado, o Santuário de Nossa Senhora do Carmo, no bairro do Boqueirão, em Curitiba, completa 60 anos. Haverá festa – "festa de igreja", expressão para quando se quer dizer que algo é familiar. Mas devagar com o andor. Essa não é uma quermesse como tantas. O "Carmo" atrai, não é de hoje, a observação de urbanistas e sociólogos. Em seis décadas de funcionamento, a comunidade que acabou grudada a um imenso terminal de ônibus, ali instalado em 1988, se tornou um típico "estudo de caso".

INFOGRÁFICO: Confira algumas novenas que inundam com fiéis as ruas de Curitiba e região

SLIDESHOW: Veja mais imagens e conheça personagens do "Carmo"

A aposta era que os 2 mil metros quadrados do espaço religioso seriam tragados pelos 6,3 mil metros quadrados do espaço público, por seus 24 mil passageiros e nove linhas de transporte coletivo. Parecia um cenário perfeito para formar mais uma daqueles locais derrotados pelas demais urgências das grandes cidades. Contra todas as evidências, contudo, o "Carmo" passa muito bem, inclusive graças ao terminal.

Apenas nas quartas-feiras, o santuário recebe nada menos do que 15 mil fiéis, vindos dos mais diversos cantos para uma das 13 novenas a Nossa Senhora do Carmo. "O Boqueirão vira na novena", fazem graça os moradores. A primeira começa às 7 da manhã, a última, às 9 da noite. Lá fora, o que em dias normais já é complicado, ganha doses extras de motoristas. Para amenizar, dois agentes da Setran são deslocados para o local, sem muito êxito. A prefeitura não tem medições seguras sobre o aumento de fluxo de automóveis em dia de novena. Resta o trocadilho: é o céu e o inferno no "Carmo".

Quanto aos comerciantes, agradecem a Deus. As novenas duplicam o movimento do terminal – o fluxo sobe para 40 mil pessoas, um Capão Raso inteiro. A propósito, o Boqueirão não é único a provar a explosão populacional causada pelas práticas devocionais de dia de semana. No Alto da Glória, as novenas do Perpétuo Socorro fazem com que 35 mil fiéis se desloquem até a zona nobre da cidade. Uma linha de ônibus teve de ser criada, a "Novena", com 1,5 mil passageiros de manhã à noite.

Cálculos do próprio "Perpétuo Socorro" indicam que 139 comunidades da arquidiocese promovam novenas às quartas-feiras, fora a da vizinha São José dos Pinhais: em expansão, mobiliza 2,1 mil rezadores na praça da Catedral de São José. Os "noveneiros", ao lado dos que procuram, às quintas-feiras, as missas do padre Reginaldo Manzotti, no "Guadalupe", e as bênçãos dos capuchinhos, nas Mercês, criam uma espécie de "diáspora religiosa instantânea" de 68 mil pessoas por semana, dando à cidade uma função à mais – a peregrinação.

Muitos visitam esses lugares na hora do almoço, numa escapadela do serviço. É comum ouvir: "Hoje não posso, tenho novena". Quem vai, e esse é o ponto, espera encontrar um bom serviço religioso. Os que atuam nesses centros religiosos sabem disso. O padre Luiz Alberto Kleina, do "Carmo", parece saber mais do que todos os outros.

Pastéis

Fosse diretor de uma empresa, padre Kleina, 48 anos, seria um gestor disputado a tapas pelos RHs. Um relógio digital no mezanino do belo templo do "Carmo" – projeto do arquiteto Mauro Magnobosco – resume a ópera. As novenas são cronometradas, o que não impede que sejam também um pequeno espetáculo da fé: contam com organista, cantores, técnicos de som e de imagem, recepcionistas, um contingente que apenas nas quartas-feiras chega a 300 voluntários.

As novenas são rezadas com missa. O catolicismo popular e a liturgia solene ali se encontram. O turíbulo aceso e o cheiro de incenso contribuem para que o clima sacro não seja atrapalhado pelo corre-corre profano do terminal, a dez passos dali. Outra faceta do "Carmo" é o atendimento. A secretária Selma Garcias, 44, braço direito do padre, calcula que 70% dos "noveneiros" venham de fora do Boqueirão. Não precisam só de boa reza – precisam se alimentar, sem gastar muito. Daí o "Carmo" cheirar incenso, mas também pastel. "Aqui não tem essa história de crise religiosa", professa a colaboradora.

A ideia de trocar pedido de esmolas por bons serviços surgiu anos atrás, durante uma reforma. Faltava dinheiro para restaurar um vitral. Em visita, padre Reginaldo Manzotti sugeriu que as paroquianas vendessem pastéis. Com Selma e outras, Arminda Ignácio, 68, fritou 25 quilos de massa. Deu certo. Hoje, são 150 quilos de massa por quarta-feira, algo como 1,5 mil pastéis. Arminda lidera até 20 cozinheiras. Há filas para tocar o manto da Virgem do Carmo, mas também para comprar salgados e doces. Detalhe: podem se alimentar em espaço coberto, com preços de ocasião, sentados e em condições de higiene.

Quem rejeita frituras, sem problema – há um ano padre Kleina abriu um café gourmet, ao lado do balcão de pastéis, o Convívio Cristão, nos moldes dos que existem nos centros de fé europeus. É elegante, abre até 10 da noite, a quem queira. Música ambiente? Jazz. Como de resto, o lucro reverte para o "Carmo".

A vista que se tem dali é satisfação garantida: terminais costumam parecer o Juízo Final. Mas olhado do pátio da igreja, não. O "Carmo" é uma soma de pequenos jardins, fontes, grutas, espaços de oração. "Se dependesse do padre eu andava com uma lata de tinta na mão", diverte-se Selma, sobre o "brinco" que é o santuário. Quem apostava que o terminal acabaria com o templo, errou: o templo melhorou a vida do terminal.

Carmo

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]