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Integrantes do Siate, Adrialdo Gosche, Valmir Pereira e Juliana Colares enfrentam situação de trauma diariamente | Antonio Costa/ Gazeta do Povo
Integrantes do Siate, Adrialdo Gosche, Valmir Pereira e Juliana Colares enfrentam situação de trauma diariamente| Foto: Antonio Costa/ Gazeta do Povo

Falar e ouvir sobre a rotina aliviam o estresse

Ser ouvido e falar sobre o próprio trabalho. Essa é a estratégia adotada pelos profissionais do setor de Enfermagem do Hospital Evangélico em parceria com o setor de Psicologia, através de um grupo de estudos de Tana­tologia (ciência que estuda a morte) que ocorre toda semana. O objetivo é dar aos envolvidos a chance de falar sobre o próprio trabalho, ouvir a opinião de colegas e compartilhar os próprios medos e anseios, comuns a quem lida rotineiramente com a dor e a perda de pacientes, além das cobranças e o sofrimento dos familiares dos internados.

"No dia a dia a gente não tem oportunidade de falar sobre o tema. É bom parar uma hora e conversar, pois todo dia a gente vivencia situações delicadas", afirma a enfermeira do setor de Clínica Médica do hospital, Idalete Bosco da Lapa. Ela acredita que todos os profissionais de saúde deveriam ter um acompanhamento, até para evitar que a sobrecarga prejudique o ambiente de trabalho. "Também mostra que por trás de cada caso há uma história. Isso [as conversas] também ajuda a ver o paciente com outro olhar", avalia a enfermeira do Setor de Neurologia, Cristiane Verbanek.

A psicóloga Giovana Maga­nhotto Coraiola, que coordena os encontros, afirma que é importante para o profissional falar sobre o assunto e ser ouvido. Giovana também convive com as situações delicadas na rotina hospitalar e acredita que todos deveriam procurar assistência psicológica, principalmente fora do trabalho. No caso do setor de Psicologia, que atende desde mulheres vítimas de estupro e queimados a pacientes terminais e mães que sofreram aborto, a estratégia adotada se baseia em conversas entre a equipe e até mesmo encontros com psicólogos fora do expediente.

"É importante haver essa conversa, pois todos nós somos humanos, e, eventualmente, durante um atendimento, pode acontecer de não conseguirmos atender um paciente porque há algo que ele conta que mexe conosco e nos impede de ouvi-lo, mas do qual não nos damos conta, não percebemos. Ao conversar com um colega, conseguimos notar isso, onde é que existe essa ‘trava’, algo que, sozinho, não conseguimos identificar", explica Giovana. A en­­­fermeira do Setor de Nefrologia, Alessandra Palhares, acredita que o acompanhamento é essencial. "Para mim, isso não é um tabu. Psicólogos não são apenas para loucos. Eu ainda não procurei, por falta de iniciativa, mas gostaria de conversar, pois há muita carga, tristeza no nosso trabalho. Às vezes nós buscamos falar com um amigo ou parente, mas eles não estão preparados, então, essa conversa é fundamental".

  • Enfermeiras do Hospital Evangélico participam de discussão semanal sobre Tanatologia, ciência que estuda a morte: alívio no estresse da profissão

Perder um familiar, ver um amigo doente ou somente presenciar o sofrimento de um estranho costumam afetar emocionalmente a maioria das pessoas. Na grande parte dos casos, porém, o luto e a angústia, por mais dolorosos que sejam, logo são superados. Mas a situação muda para alguns profissionais, como bombeiros, socorristas, médicos, enfermeiros e psicólogos. Mesmo que a relação estabelecida seja apenas entre cuidador e paciente (e não de parentesco ou afinidade), o convívio com situações tão delicadas é marcante. E pode comprometer a capacidade do cuidador de atender o outro.

Um exemplo ocorre nos hospitais, onde a convivência entre pacientes e profissionais de saúde pode ser longa e o doente crie afinidade com quem o cuida. Em caso de morte, é comum a equipe médica também ser afetada por saudade e tristeza. O problema é quando a situação sai do controle e o profissional fica sensível às cobranças dos familiares, faz questionamentos sobre a vocação e o trabalho. Daí a importância do preparo psicológico, que ajuda a evitar situações que levam ao desentendimento entre colegas, desligamento e até doenças.

Para especialistas, o acompanhamento esporádico dos profissionais, principalmente após situações traumáticas; e encontros entre as equipes para a discussão do trabalho e suas implicações em quem está sendo atendido são os procedimentos indicados. A atenção pós-trauma é adotada pela Polícia Militar do Paraná (PM-PR), que abrange, além dos policiais, também os socorristas do Serviço Integrado de Atendimento ao Trauma em Emergência (Siate) e bombeiros. O protocolo determina que, após viver situações que envolvam mortes ou acidentes graves, o socorrista ou bombeiro seja encaminhado ao Sistema de Assistência à Saúde (SAS) da PM, onde será atendido por uma equipe multidisciplinar que inclui psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras.

O maior desafio hoje, no entanto, de acordo com o coordenador do SAS, major Márcio de Modesti, é sensibilizar a corporação para a importância do acompanhamento. Bombeiros e so­­­cor­­­ristas ainda não procuram o serviço tanto quanto seus colegas policiais, que seguem o mesmo protocolo. "É uma questão cultural. Quando se fala no policial, se pensa na repressão ao crime, em tirar vidas. A figura do bombeiro é mais simpática, já que ele salva vidas. É como se o bombeiro não precisasse de ajuda, como se ele desse conta de tudo", diz o major.

Os superiores também precisam reconhecer a importância desse atendimento e assumir a responsabilidade pelo encaminhamento de quem demonstra dificuldade no cumprimento das tarefas do dia a dia. Em muitos casos, o profissional demonstra irritabilidade ou apatia, além de discutir com colegas, perde a fome ou o sono. "Não é preciso ser técnico. Se você percebe que há uma mudança de comportamento, é interessante sugerir que procure o SAS", afirma De Modesti.

O preconceito ainda é muito grande, de acordo com o major. Ele afirma que a maior dificuldade é desmistificar a figura do psicólogo como um médico "de loucos". Ele defende que os profissionais procurem mais o serviço. "Eu sempre comento: Você não vai ao dentista a cada seis meses? Não vai ao médico fazer o preventivo? E ao psicólogo, para checar a sua saúde mental, de quanto em quanto tempo você vai? Existe o protocolo, nós estamos aqui, é preciso que eles venham até nós."

Rotina pesada é teste diário de superação

Para quem trabalha ajudando ou cuidando do outro, o serviço, embora com horário de entrada e saída, acaba tomando proporções maiores do que as desejadas e consideradas saudáveis por especialistas. O soldado Adrialdo Gosche, o sargento Valmir Pereira, do Corpo de Bombeiros e a socorrista do Siate, sargento Juliana Colares, são exemplos dessa condição. No caso de Gosche e Pereira, não é raro algum vizinho ou conhecido bater à porta da casa da família em um horário de folga em busca de ajuda, seja porque um morador do bairro foi baleado, uma casa pegou fogo ou alguém está passando mal. "Se a pessoa sabe que você é bombeiro, não tem jeito", comenta Gosche.

Lembranças de fatos tristes também acompanham os bombeiros e, nessas horas, a conversa com colegas é fundamental. "Na hora, não há como pensar muito, pois temos que fazer o serviço. Depois é que vem a parte mais complicada, ficamos tristes, feridos, e às vezes choramos junto", conta Pereira. Se a ocorrência envolve crianças, os bombeiros costumam ficar mais abalados. "Isso sempre deixa o pessoal nervoso. A gente pensa nos filhos, abala bastante. Tem quem chore, pois a criança é um anjinho, não deveria estar ali. É sempre triste", conta Gosche.

A sargento Colares revela que, após virar socorrista, passou a ficar mais cansada, e que às vezes se assusta quando ouve a freada de um carro. O contato com a morte e traumas também a fazem imaginar que a situação poderia estar ocorrendo com parentes, o que causa ansiedade. A falta de sensibilidade de algumas pessoas também agrava o problema: muitos não entendem que o quartel pode estar longe de uma ocorrência e outros não facilitam o trabalho da ambulância abrindo caminho no trânsito.

Ela acredita que a presença de um psicólogo destacado para o quartel ajudaria a diminuir casos de colegas que acabam afastados por conta do estresse. "Não é igual para todo mundo. Há quem trabalhe na ambulância há 25 anos e que leva numa boa, mas há também quem estava na rua e foi para o setor administrativo por conta do estresse. A sensação de dever cumprido e a gratidão das pessoas alivia, mas o trabalho ainda é muito pesado e exige muito".

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