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O guarda municipal Marcelo Arruda, assassinado em festa de aniversário que teve Lula como tema.| Foto: Reprodução/Redes Sociais

Uma regra inserida por deputados no pacote anticrime, em 2019, poderá dificultar a punição do médico anestesista preso em flagrante após abusar de uma mulher durante o parto, e também do agente penal Jorge Guaranho, que matou, no último dia 10, o guarda municipal e tesoureiro do PT Marcelo Arruda, durante sua festa de aniversário, em Foz do Iguaçu (PR).

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O dispositivo diz que captações ambientais realizadas sem o prévio conhecimento da polícia ou do Ministério Público podem ser utilizadas “em matéria de defesa”. Numa interpretação literal da lei, significa que as gravações, quando feitas por pessoas comuns sem aval das autoridades, só podem ser usadas para defender quem foi flagrado nelas cometendo um crime, não para acusá-las.

Essa regra não fazia parte da proposta original do pacote anticrime enviada ao Legislativo pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, e foi enxertada durante a tramitação na Câmara. Aprovada também por senadores, ela depois foi vetada pelo presidente Jair Bolsonaro na sanção do projeto, mas depois, em 2020, o Congresso derrubou o veto e restabeleceu sua validade na lei.

Agora, penalistas acreditam que ela pode beneficiar tanto o médico quanto Guaranho, porque as gravações de seus atos não eram previamente conhecidas pela polícia e pelo MP. O anestesista foi gravado por enfermeiras que desconfiavam de seu comportamento e esconderam um celular dentro do armário da sala de parto, no Hospital da Mulher de São João de Meriti (RJ). O agente penal, por sua vez, teve seus atos filmados por câmeras de segurança instaladas na sede da Associação Esportiva Saúde Física Itaipu, local da festa de Marcelo Arruda.

“No estupro médico e no homicídio em Foz, tivemos filmagens sem ciência dos criminosos. O Parlamento derrubou o veto ao §4º do artigo 8º-A, da Lei 9296/96. Assim, o uso das imagens só vale ‘em matéria de defesa’. Tem ADI no STF, 6816. Boa hora pra declarar a inconstitucionalidade”, alertou o procurador de Justiça do Paraná Rodrigo Chemim, que é também é doutor e professor em direito processual penal.

Existe ação no STF para derrubar a regra que limita uso de gravações

De fato, tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) desde abril do ano passado uma ação direta de inconstitucionalidade para derrubar a limitação. Ela foi apresentada pela Rede e já conta com pareceres favoráveis da Procuradoria-Geral da República (PGR), da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Presidência da República.

A Rede chamou a atenção para o prejuízo que sofreriam as vítimas que gravassem seus ofensores de forma escondida, o que agravaria o problema da impunidade. “Poderá o infrator utilizar, como meio de defesa, prova produzida de determinada forma, mas não poderá um cidadão alvo de criminosos utilizar prova produzida exatamente da mesma forma para comprovar que está sendo vítima de infratores”.

Na mesma linha, a PGR defendeu que tanto a defesa, quanto a acusação, e também a vítima, possam usar gravações voluntárias, desde que comprovada sua integridade e justa causa, isto é, a preservação do material sem manipulações e o propósito de elucidação de crimes.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, destacou que as gravações têm se mostrado importantes para proteger vítimas e testemunhas, especialmente em casos de violência doméstica contra mulheres e estupro de crianças em casa.

“Não são crimes de rua cuja elucidação ocorre por técnicas comuns de investigação – oitiva de testemunhas oculares, gravação por câmeras de 'segurança, busca e apreensão. Invalidar gravações ambientais ou desprezá-las quando verificada integridade das provas, apenas por serem usadas pela acusação e não pela defesa, mostra-se incompatível com o princípio da igualdade, inviabiliza a paridade de armas no contexto do processo penal e tem o potencial de gerar a impunidade de ofensores para cuja resposta estatal é imperiosa”, disse Aras.

Em sua manifestação ao STF, Bolsonaro reproduziu as razões que o levaram a vetar a regra no fim de 2019, quando ele sancionou o pacote anticrime.

“A propositura legislativa, ao limitar o uso da prova obtida mediante a captação ambiental apenas pela defesa, contraria o interesse público uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime”, diz a mensagem do veto presidencial.

Todos as instituições chamaram a atenção para o fato de a nova regra contrariar uma jurisprudência consolidada no STF e nos demais tribunais superiores de Brasília.

Desde 2009, a Suprema Corte considera válida a prova produzida por meio de uma gravação ambiental de uma conversa feita por um interlocutor sem o conhecimento do outro. Entende-se que isso não contraria o princípio da intimidade da vida privada nem fere a regra que impõe sigilo a interceptações telefônicas, autorizadas pela Justiça em investigações.

“Quem revela conversa da qual foi partícipe, como emissor ou receptor, não intercepta, apenas dispõe do que também é seu e, portanto, não subtrai, como se fora terceiro, o sigilo à comunicação”, diz trecho da decisão de 2009.

A ação contra a limitação no uso das gravações tem como relator o ministro Kassio Nunes Marques. A Rede pediu que ele suspendesse de forma monocrática e urgente, numa liminar, a validade da regra. Ele, no entanto, resolveu antes pedir a manifestação do Executivo, Legislativo e PGR e só depois levar o pedido para deliberação conjunta no plenário do STF.

Ainda não há, porém, previsão de que a questão seja pautada pelo presidente da Corte, Luiz Fux. A ação não está na agenda de julgamentos já divulgada para o mês de agosto.

Penalistas dizem que é possível salvar as provas

Até lá, porém, é possível que os próprios juízes que supervisionam as investigações ou mesmo julguem os processos – inclusive os relativos ao médico e Guaranho – relativizem a restrição imposta pela regra das gravações. É o que diz o advogado e professor de direito processual penal Leonardo Pantaleão.

“No caso do médico, a captação não foi feita por um dos interlocutores, mas por terceiros. Não há irregularidade, até porque a gravação possibilitou a caracterização do flagrante. E não se trata de um flagrante preparado, em que a polícia teria provocado uma conduta criminosa. Foi um flagrante esperado. Ninguém incentivou, o que existia era uma suspeita sobre o médico, com base em fatos pretéritos, de que ele poderia fazer algo diferente”, disse.

No caso do agente penal, Pantaleão também entende a regra não deve ser aplicada. “Circuitos internos de monitoramento são instrumentos hábeis a comprovar atividades ilícitas”, afirma.

À reportagem, Chemin também disse ser possível validar as gravações como provas, mesmo com a regra de limitação para a defesa.

“No caso do estuprador, por exemplo, é possível argumentar que ele era funcionário e, como tal, sujeito a fiscalização do hospital. No caso de Foz, dá para argumentar que as gravações se deram em ambiente público. O problema é que essa nova lei abre brecha para questionar a validade dessas provas. E vai contra a jurisprudência consagrada do STF, que é anterior à lei. O incrível é que tenhamos que argumentar pelo aproveitamento da prova.”

Deputado protocola projeto para reverter limitação das gravações

Nesta quarta-feira (13), o deputado Capitão Augusto (PL-SP) protocolou na Câmara um novo projeto de lei para derrubar a regra que limita à defesa o uso de gravações privadas, de modo que elas também possam ser usadas pela acusação e pelas vítimas.

O parlamentar foi relator do pacote anticrime e, na época, foi contrário à regra de limitação e alertou para seus riscos. “Agora, como era esperado, temos que lidar com as graves consequências do que foi estabelecido”, afirmou na justificativa da proposta.

Quando a regra foi aprovada no Congresso, um dos objetivos era inibir o uso de gravações por pessoas investigadas em casos de corrupção e que cogitavam fazer acordos de delação. Casos emblemáticos e duramente criticados na época foram as gravações feitas pelo empresário Joesley Batista e pelo ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado, que gravaram políticos em conversas privadas e depois apresentaram o material como prova em seus acordos.

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