Trecho de transposição do Rio São Francisco.| Foto: TV Brasil/Agência Brasil
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Nos últimos dias, diversos conteúdos publicados nas redes sociais falam sobre problemas de seca ou desligamento de bombas em canais da transposição do Rio São Francisco. Muitos deles são registros antigos e já foram desmentidos por alguns meios jornalísticos. Outros são autênticos e mostram, de fato, canais das obras de transposição com trechos parcial ou completamente secos.

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As publicações recentes e as checagens de conteúdo são mais um capítulo de uma guerra pela autoria da obra, que há décadas é vendida como panaceia para a falta de água em regiões afetadas pela seca no Nordeste do país. Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) acusam o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de tentar sabotar a conclusão da obra para perpetuar a indústria da seca. Apoiadores de Lula acusam Bolsonaro de tentar capitalizar politicamente uma obra que teria o petista como pai.

Para especialistas consultados pela Gazeta do Povo, Lula e Bolsonaro estão brigando pela autoria de um erro histórico. Os canais de transposição são, na visão deles, nada mais do que um elefante branco que não chega perto de resolver o problema social da falta de água no semiárido brasileiro.

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A ideia de deslocar o Rio São Francisco é do século 19, dos tempos do Brasil Império, e foi retomada por diversos governos na história da República. Em 1998, o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) concebeu um projeto de transposição do rio, que começou a ser implementado no final do primeiro governo Lula, em 2007.

Desde a década de 1990, o professor João Abner Guimarães Júnior, doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento e professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN), busca mostrar, junto com um grupo de pesquisadores da mesma área, que a transposição do Rio São Francisco é um erro desde sua concepção. Agora, ele se considera vingado pela realidade.

"A realidade está mostrando o que é a transposição do São Francisco. É um projeto inviável, entendeu? Um projeto político que teve principalmente motivação político-eleitoral. Já cumpriu com a sua finalidade. Foi usado e abusado tanto na eleição de Lula como na eleição de Dilma. Até mesmo Bolsonaro usou e abusou desse projeto. O interesse político – que sempre foi, para mim, o principal – já chupou o sumo da transposição. O que ficou? Ficou uma obra inviável. A transposição é uma obra inviável. O custo de manutenção da transposição é absurdo. Vai custar, por ano, mais de meio bilhão de reais", critica.

O grande problema do semiárido, segundo ele, é a infraestrutura de distribuição da água para a população. Para esse problema, a classe política brasileira nem sequer começou a propor soluções. A questão urbana de como levar a água aos habitantes dos municípios do semiárido deveria ser prioritária e anterior aos planos de transposição do rio, mas nunca foi enfrentada.

Abner considera previsível, por isso, que comecem a surgir imagens de trechos dos canais da transposição inutilizados: não há órgão estatal ou empresa que vá querer bancar a manutenção desses canais sem um projeto claro de como eles poderiam servir à população.

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"É um custo de manutenção muito alto, que os estados não querem bancar. Falaram no início que esse custo seria bancado pelo setor urbano. Só que o setor urbano ainda não foi nem consultado se topa ou não pagar por essa água. A inviabilidade econômica está aparecendo. Nós dizíamos isso em 2004, mas havia uma rede de proteção que impedia isso de se tornar público. Enquanto as obras estavam sendo feitas, elas não podiam parar", comenta.

Segundo ele, os canais de concreto, expostos ao sol do sertão nordestino, tendem a sofrer rápida deterioração. Por isso, a manutenção será cara tanto nos casos em que a água for bombeada e correr pelos canais – o que vai diminuir a erosão do concreto, mas vai demandar alto consumo de energia – quanto nas situações em que os canais ficarem secos.

Para Eduardo Lima de Matos, doutor em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e ex-secretário do Meio Ambiente de Aracaju, há um "erro de concepção grandioso" nas obras de transposição do São Francisco.

"A prioridade não era o social, não era acessar as pessoas sem água. Levar água para as pessoas era, digamos, a propaganda do projeto, mas não a essência", critica. "Claro que algumas cidades que estão numa zona seca, como Campina Grande, precisavam de uma transposição pontualmente. Mas nós estamos falando de dois canais gigantes de mais de 700 quilômetros", acrescenta.

Matos considera que o investimento necessário para montar uma infraestrutura de distribuição da água seria, hoje, mais ou menos equivalente ao da transposição – que ultrapassa os R$ 15 bilhões –, mas destaca, assim como Abner, que nunca houve um plano verdadeiro para isso.

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Os dois especialistas discordam, contudo, sobre as reais motivações para a transposição. Para Matos, o projeto serviu essencialmente para bancar a produção agrícola para exportação. "Essa água da transposição é para a fruticultura irrigada, é para a exportação. Estamos exportando a água do São Francisco a um preço caríssimo bancado pelo sistema", diz.

Para Abner, o objetivo é "a obra pela obra": os reais interessados são o setor da construção civil e os demagogos da política. "A prioridade era fazer a obra em si. E quanto maior fosse a obra, melhor. Essa lógica prevalece até hoje. São obras que contam com interesse da indústria da construção civil, com uma grande articulação dentro do governo, e que conseguem juntar muitos políticos. Essa é a lógica da indústria da seca".

Bolsonaro teve chance de redirecionar projeto, mas preferiu seguir lógica da indústria da seca

João Abner diz que, quando Bolsonaro assumiu, ele e outros especialistas na gestão de recursos hídricos tinham boas expectativas e chegaram a levar uma proposta com diretrizes para a distribuição de água aos municípios do semiárido, pensando especialmente em ajudar a solucionar o problema do abastecimento humano.

No início do governo, em 2019, o então ministro do Desenvolvimento Regional Gustavo Canuto parecia receptivo às novas ideias. Mas, aos poucos, a proposta de concluir a transposição seguindo os moldes da indústria da seca começou a ser vista como eleitoralmente importante para Bolsonaro. Rogério Marinho, que substituiu Canuto no começo de 2020, encampou o plano de dar cabo à execução física das obras de transposição do São Francisco e de vender isso como uma conquista do governo Bolsonaro.

A transposição do Rio São Francisco é dividida entre dois eixos principais: o Eixo Leste, que tem 217 km e cruza municípios da Paraíba e de Pernambuco, e o Eixo Norte, com 260 km, cruzando municípios de Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Mais de 95% de ambos os eixos já tinham suas estruturas físicas prontas quando Bolsonaro assumiu, mas seu governo concluiu essas obras, que se estendiam desde 2007.

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Além disso, o governo Bolsonaro também levou a cabo as obras do Ramal do Agreste, de 71 km, que conduz água do Eixo Leste a mais municípios de Pernambuco, e começou as obras do ramal do Apodi, com 115 km, que leva água do Eixo Norte ao Rio Grande do Norte. Ambos os ramais estavam no projeto original, mas não tinham sido iniciados pelos governos do PT.

No final do governo Bolsonaro, e especialmente na época das eleições, a aceleração das obras e a conclusão de trechos importantes foram exploradas pelo ex-presidente na campanha. Ao longo das gestões petistas, promessas de conclusão das obras foram reiteradas, mas nunca cumpridas, e Bolsonaro decidiu aproveitar isso politicamente.

Em 2009, conforme mostra uma reportagem da Folha de S.Paulo dessa época, Lula prometeu concluir os eixos Norte e Leste em 2012; em 2013, conforme reportagem do Correio Braziliense, Dilma afirmou que concluiria as obras de transposição do São Francisco em 2015; em 2015, segundo o portal G1, Dilma prometeu concluir as obras em 2016.

Embora tenha sido eficaz nas entregas, Bolsonaro manteve os projetos tais como eles foram concebidos na época de FHC. Para Abner, o ex-presidente perdeu uma oportunidade de redirecionar a gestão hídrica da região Nordeste e de ajudar a dar fim à lógica da indústria da seca. E, se seu objetivo era explorar eleitoralmente a transposição, isso também não deu certo.

"Nas cidades onde a água da transposição passou, onde ele inaugurou a transposição, a derrota popular foi grande. Não deu resultado eleitoral", afirma.

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Embora seja crítico das obras de transposição, Abner não é fatalista quanto ao problema do abastecimento de água no semiárido. Ele enxerga a possibilidade de resolver o problema por outros meios.

Para ele, é preciso setorizar a gestão hídrica no Nordeste, mais do que executar grandes obras. Além disso, é necessário induzir a participação de capital privado, em uma espécie de "choque liberal" do abastecimento de água no semiárido, estimulando as parcerias público-privadas. Isso deve estar aliado, segundo ele, a um plano que integre as esferas de governo federal, estadual e municipal.

"Seria uma verdadeira revolução nessa área. Mas teria que entrar com privatização. A indústria da seca é uma doença do Estado brasileiro. E, enquanto a gente não diminuir o papel do Estado brasileiro nesse setor de água, a gente não vai se livrar da indústria da seca", comenta.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]